A seca de 2023 na Amazônia é ainda uma história a ser contada. Raras vezes se viu a força da natureza ser tão implacável, mesmo em um ambiente já acostumado aos extremos de seus ciclos naturais. Todo ano, o amazônida sabe que as águas vão subir e baixar. E ele aprendeu a se adaptar a essa realidade. Mas, no ano passado, os efeitos climáticos passaram de todos os limites. Os rios mais que secaram: alguns desapareceram. Os animais perderam seus refúgios e milhares deles morreram. Só no lago Tefé, no Amazonas, pesquisadores do Instituto Mamirauá tiveram de recolher, durante dois meses, 222 carcaças de tucuxis e botos vermelhos. Por que ocorreu essa mortandade sem precedentes de mamíferos aquáticos? E que alerta ela traz sobre a crise climática? A Amazônia Real reconstitui, passo a passo, esse triste episódio, ouvindo especialistas e pessoas que estiveram envolvidas na vã tentativa de salvar os animais.
Por Wérica Lima - Tefé (AM) – Seria um sábado de folga para a bióloga Mariana Lobato e pesquisadores do Instituto Mamirauá, localizado no lago Tefé, no Amazonas. Grande parte do Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos Amazônicos, formado em sua maioria por mulheres, havia acabado de chegar da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã (RDSA), onde foram a campo realizar a análise de saúde de animais. Mas uma ligação telefônica inesperada na tarde daquele 23 de setembro de 2023 desconcertou a todos – e cancelou o merecido descanso.
As primeiras informações davam conta de que cerca de 17 botos e tucuxis apareceram mortos no lago Tefé. Mariana não acreditou no que estava ouvindo até descer no rio e avistar os corpos dos animais boiando. “O que está acontecendo?”, foi a pergunta que mais se fez nos dias seguintes. Assim como os moradores locais, a pesquisadora também não tinha explicações.
Não havia relatos, registros ou pesquisas sobre botos vermelhos (Inia geoffrensis) e tucuxis (Sotalia fluviatilis), duas espécies de golfinhos de água-doce do lago Tefé. As plataformas acadêmicas que armazenam o conhecimento científico não apresentavam pistas. Os pesquisadores vasculharam, em particular, estudos e registros de 2010, ano da última seca extrema. Mas não havia nada que fizesse a correlação entre o aparecimento de carcaças dos mamíferos aquáticos e as temperaturas elevadas de água e do ar.
Nenhuma linha em particular dessa história fatal havia sido escrita antes. Aquela cena presenciada por Mariana Lobato foi apenas o primeiro sinal de que algo muito mais grave estava por vir.
O boto vermelho e o tucuxi são altamente simbólicos para os amazônidas. Eles fazem parte de sua cultura e de suas histórias. “A gente não via nenhuma ação humana, nenhuma marca de arpão, malhadeira ou cortes. Eram bichos que por fora estavam saudáveis”, relembra a bióloga.
Em 27 de setembro, uma quarta-feira, a equipe do Mamirauá identificou mais 28 carcaças. Foi o dia mais trágico. Todos os colaboradores do instituto foram mobilizados, independente da área de pesquisa, para ajudar nas coletas. Eram tantos corpos de animais que muitos não puderam ser recolhidos por inteiro. Os pesquisadores cortavam só o crânio, a parte fundamental para coletar as principais informações sobre cada indivíduo e realizar análises futuras.
As pesquisadoras tiveram de travar uma luta contra o cansaço. A jornada começava às 5 da manhã e acabava às 23 horas, dentro do laboratório de necrópsia. Foi preciso montar um acampamento no Tefé e até um barco serviu como base no lago. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio) instaurou um comando de emergência no local. A essa altura, a notícia tinha corrido o mundo.
Para descobrir se o que estava acontecendo era algo crônico ou agudo, Adria Moreira, médica veterinária responsável pela necrópsia, não podia ignorar nenhum detalhe das observações que fazia. Uma ficha inicial foi elaborada a partir de cada informação que parecia relevante. A equipe só conseguiu chegar a um formato definitivo desse documento cerca de 20 dias depois do início dos trabalhos.
“Lidar com a morte em si foi algo bem traumático. Eu sentia que estava num acampamento de guerra”, relata Adria Moreira. Em geral, profissionais que realizam necrópsias são bastante técnicos: tudo segue um protocolo, com anotações e registros de imagens, passo por passo. Mas, daquela vez, as cenas chocavam. “Até ao entrar era um baque muito grande, que eu nunca gostaria de lidar com a morte assim. Mas foi preciso.”
O nível de decomposição dos corpos era “COD 4”, um dos mais avançados, segundo a medicina legal. Nesse estágio, o processo de análise era mais complicado e as pesquisadoras não conseguiam inferir muita coisa. Para a veterinária, foi difícil lidar com o psicológico diante de algo nunca visto e que exigia muito esforço físico e mental, ampliado pela necessidade de acordar cedo e dormir muito tarde naqueles dias. “Foi algo que aconteceu de maneira emergente, não tinha como evitar ou como escolher”, conta.
Investigações iniciais
Bactéria, vírus ou calor extremo? Diante de uma crise climática sem precedentes na Amazônia, a última hipótese parecia ter mais força. Para as pesquisadoras, o calor poderia estar agravando um quadro de doença pulmonar ou cardíaca geralmente encontrada nos cetáceos (mamíferos aquáticos). A água aquecida poderia ajudar a proliferar uma doença bacteriológica ou infecciosa que já estivesse presente nos animais.
As pesquisadoras cogitaram mover os animais do lago, que estava muito seco, para o rio principal. Muitos, de fora, clamavam por medidas urgentes. Mas essa opção incorreria no risco de espalhar uma doença, se houvesse uma, para o resto do rio Amazonas. Essa dúvida se dissipou quando os resultados dos exames bacteriológicos deram negativos, reforçando a hipótese do efeito assassino da onda de calor. A região amazônica, naqueles meses, ultrapassava os 40º Celsius, e a seca no rio Negro [que forma o rio Amazonas junto ao Solimões] já tinha atingido o mais baixo nível em 119 anos: 13,59 metros.
Conforme relatório do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), com os dados da World Meteorological Organization (WMO) e da National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), 2023 foi o ano mais quente desde que os registros globais começaram em 1850. As maiores anomalias foram registradas de setembro a dezembro de 2023 entre 4 a 5 graus acima da média. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) , aconteceram 6 ondas de calor intensas entre agosto e novembro de 2023.
O calor externo já seria uma situação extrema, mas havia outro elemento a ser considerado por estar à vista de todos. Mariana Lobato não descarta a contribuição das queimadas na região, que batia recordes e deixou a capital do Amazonas, Manaus, sob fumaça por meses. “A qualidade do ar estava péssima, e como os golfinhos de água doce são mamíferos, eles não respiram oxigênio da água”, explica. “Eles respiram oxigênio atmosférico e como eles já têm problemas respiratórios, isso pode sim ter integrado quadro de problemas respiratórios”, ressalta.
Somente após confirmação de que não havia uma doença contagiosa, os animais passaram a ser soltos na boca do lago Tefé, numa tentativa de salvar os sobreviventes.
Descoberta inesperada
Sem a presença de doenças nos exames dos mamíferos aquáticos, a equipe de pesquisa fez coletas da água e testes para biotoxinas na busca para encontrar microalgas e cianobactérias (bactérias que obtêm energia pela luz solar). O que não se esperava era encontrar uma espécie de microalga chamada Euglena sanguinea, que nunca tinha sido registrada nos rios da Amazônia.
“A Euglena sanguinea produz uma substância que se chama euglenoficina, de grande toxicidade para os peixes. Mas não há estudo para mamíferos aquáticos”, afirma Mariana. Os peixes morreram dias depois dos primeiros botos, o que gera dúvida se a toxina contribuiu para a mortandade, ainda que de forma indireta.
Em duas de seis amostras analisadas sobre os tucuxis (Sotalia fluviatilis) foi encontrada uma pequena quantidade de “palitoxina e análogos”, substâncias que ainda são um mistério para a ciência. Conforme os estudos levantados pela equipe de pesquisa do Instituto Mamirauá, a palitoxina e análogos são causas da doença de Haff, mais conhecida como “urina preta”.
Casos de “urina preta” foram notificados recentemente pelo Ministério da Saúde em Tefé. Os sintomas da doença gerada pela ingestão de peixe contaminado com a molécula de palitoxina são dores musculares, dor de cabeça e febre, que podem ser confundidos com uma gripe, malária ou dengue, doenças endêmicas da região amazônica.
Mariana Lobato diz acreditar que a falta de acesso à saúde em comunidades mais distantes e os sintomas que podem ser confundidos com outras doenças devem ter levado a uma subnotificação dos casos em Tefé. Na ciência, a “palitoxina e análogos” são pouco estudados. Não se sabe, por exemplo, quem ou como são produzidas e quais são as possíveis formas. Há centenas de toxinas análogas já mapeadas, mas como elas são processadas dentro do organismo é algo que segue sem explicação. “Tanto que o tratamento para essa doença (“urina preta”) em humanos é hidratação. A pessoa simplesmente se hidrata e se cuida dessa doença”, explica.
Estudos científicos indicam que a palitoxina e seus análogos já causaram doenças em mamíferos aquáticos de água salgada. Os botos e tucuxis vivem apenas em água doce. Essa é uma linha de pesquisa possível para decifrar a morte massiva dos animais no lago Tefé. “Isso [palitoxina] em microdoses pode causar rompimento das fibras musculares, dor muscular e justificar o comportamento estranho que eles estavam tendo no lago. Causa também falha cerebral e o mais importante é a falha renal. Essa falha renal vai causar a morte do animal”, acrescenta a pesquisadora.
“Banheira de 40 graus”
Além da palitoxina, seus análogos e a espécie Euglena sanguinea, não foram encontrados metais, contaminantes e biotoxinas anormais nas análises de água. Com a qualidade do ar ruim e a seca severa, as pesquisadoras retornaram para a hipótese mais concreta do intenso calor como gerador de um verdadeiro colapso ambiental.
“A gente até achava que eles [botos e tucuxis] estavam querendo sair da água, que estava fervendo, 40 graus dentro da água. Imagine você numa banheira 40 graus querendo sair e aí o ar em cima estava todo cheio de fumaça, todo horrível, como é que respira? Então se começa a ter reações extremas”, diz Mariana Lobato, que atua como técnica de laboratório.
O comportamento normal esperado com quem trabalha e convive com os tucuxis e botos é de avistar os animais tendo uma respiração superficial a cada minuto, forrageando e até brincando. Mas não era bem isso que as pessoas e os pesquisadores avistaram. Os comportamentos fugiam da normalidade. “Eram bichos se debatendo na água, pulavam fora da água, literalmente se debatiam como se fossem um peixe morrendo. Foi desesperador”, acrescenta Mariana.
Os dados conduzem cada vez mais com a hipótese de que os animais morreram por causa do calor, com uma temperatura chegando a mais de 10 graus acima do normal.
“Toda necropsia que a gente fazia a gente via indícios de estresse térmico, muita hemorragia, falha dos órgãos, o cérebro todo colmatado (coberto) com marcas de sangue, sangue coagulado”, conclui a técnica.
Ayan Fleischmann, coordenador do Grupo de Pesquisa em Geociências e Dinâmicas Ambientais na Amazônia do Instituto Mamirauá, afirma que a alta temperatura é um parâmetro-chave para entender o impacto das secas. No lago Tefé, os pesquisadores mediram a temperatura que chegou a 41 graus na coluna d’água durante vários dias e sempre no meio da tarde, um valor completamente desproporcional. “Fora da realidade, quando normalmente a temperatura média fica entre 29 e 31 graus”, compara o pesquisador.
Estresse ambiental
A zoóloga Cláudia Souza faz monitoramento de carcaças no Lago Tefé; uma vez por dia é feito o monitoramento da água pelos pesquisadores do Instituto Mamirauá. Ádria Costa mostra a ficha técnica da necropsia (Fotos: Stéffane Azevedo/Amazônia Real).
No lado das necrópsias, a médica veterinária Adria Moreira avançava nas análises. O que sua equipe notou, de forma notória, eram características de um fator estressante ambiental “hiperagudo”, com muita congestão e hemorragia. É como se o corpo dos mamíferos aquáticos fossem incapazes de reagir à elevação da temperatura das águas.
“O sistema nervoso do animal começava a mandar substâncias, no caso proteínas estressantes, para o sangue e os vasos começavam a ter um distúrbio hemodinâmico muito grande”, diz ela. Em condições normais, há um equilíbrio hemostático entre a circulação sanguínea e as substâncias que correm fora dos vasos. Em Tefé, ocorreu um extravasamento em decorrência desse desequilíbrio ambiental.
O extravasamento das substâncias de estresse é o que gerou hemorragia, congestão e até choques circulatórios que levaram ao óbito dos animais observados, segundo Moreira. O organismo dos botos e tucuxis ficou desnorteado com a falta de equilíbrio osmótico (movimento dos líquidos no organismo) e estática.
Para a especialista, em um choque como o descrito, a região do crânio apresenta grande hemorragia, assim como o tórax. O sangue extravasa, formando coágulos e edemas cerebral e pulmonar, além de provocar hemorragia pulmonar. Nos rins, a proteína do músculo começa a extravasar, intoxicando esses órgãos. Adria também relata que a urina dos animais estava sanguinolenta, o que indica hemorragia renal, uma característica de choque no organismo.
“A rabdomiólise é um estresse muscular que gera uma hemorragia renal. Quando vai ver, a urina está escura. Não posso afirmar que é rabdomiólise, mas a toxicologia já encontrou resquícios”, diz a médica veterinária. Sabe-se que ela ocorre em situações de estresse muito alto, seja nos peixes ou nos humanos”, diz Adria Moreira. “É uma sentinela para ficarmos atentos, os rios e os animais estão sofrendo muito com esse estresse ambiental”, alerta.
Colapso ecológico
Há 40 anos estudando a vida aquática na Amazônia, o ictiólogo Jansen Zuanon é uma testemunha viva dos impactos devastadores das secas extremas. A cada evento severo, a vida subaquática se vê em uma batalha pela própria sobrevivência. Com o aumento da temperatura da água, a quantidade de oxigênio disponível diminui, afetando diretamente a fisiologia dos peixes. Essas espécies, como os humanos e outros vertebrados, possuem um limite de tolerância térmica, em torno dos 40 graus. Acima disso, as proteínas do corpo desnaturam, deixando de funcionar.
“As proteínas têm uma estrutura física tridimensional, com átomos ligados uns aos outros por forças de diferentes tipos. Quando aquece muito os átomos começam a se agitar, todas essas ligações são quebradas e aí se desfaz a estrutura física da proteína”, explica. No lago Tefé, a combinação da alta temperatura com a baixa qualidade da água resultou na morte de milhares de peixes.
“Esses peixes entram em decomposição e as bactérias acabam consumindo mais o oxigênio, o que piora ainda mais a situação. Isso gera uma água em condições péssimas, não só para os próprios peixes, mas também para mamíferos aquáticos como a gente viu no caso dos botos e tucuxis”, afirma Zuanon.
Embora algumas espécies de peixes tenham o “aiú”, um mecanismo de adaptação que gera a inflamação dos lábios inferiores para captar oxigênio na superfície, a tolerância à temperatura varia. As diferentes espécies sucumbem em momentos distintos, até que o colapso do ecossistema se torna inevitável. “É um efeito dominó”, diz Zuanon. “Quanto mais peixes morrem, pior a qualidade da água se torna, até que se torna insuportável para a maioria dos organismos.”
Na várzea, a baixa do oxigênio é comum durante a seca, pois há material em decomposição. Algumas espécies já se adaptaram a essa nova realidade de falta de oxigênio. Elas chegam a resistir até dois ou três meses, como foi o caso do Lago Tefé.
Floresta seca
O real impacto da seca extrema de 2023 sobre as regiões de igapó e várzea ainda é incerto, mas estudos anteriores e a análise de especialistas fornecem pistas preocupantes. Flávia Costa, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) na área de Ecologia Florestal e Funcional, explica que as plantas demoram para responder às mudanças do clima, mas que já mostraram sensibilidade das florestas alagadas, em especial os igapós.
“O problema dos igapós é que eles acumulam uma camada densa de folhas no chão, propensa ao fogo”, diz a pesquisadora. Essa vulnerabilidade se soma aos recordes de queimadas na Amazônia em 2023, um aumento de 463% em relação a 2022, segundo o Monitor do Fogo do Mapbiomas. No total, 1,3 milhão de hectares foram queimados no ano passado.
Nas florestas de terra-firme, as secas e altas temperaturas causam estresse na vegetação, levando à redução da capacidade de armazenar carbono ou até a sua perda, explica Costa. Funciona assim: as plantas fecham os estômatos para evitar a perda de água, mas deixar de absorver carbono para a fotossíntese. E, continua a especialista, “as secas extremas aumentam a mortalidade, diminuindo o número de árvores que absorvem o carbono. As árvores mortas então vão começar a emitir carbono para a atmosfera durante a decomposição.”
Joice Ferreira, ecóloga da Embrapa Amazônia Oriental e co-fundadora da Rede Amazônia Sustentável (RAS), explica que as altas temperaturas ultrapassam os limites de tolerância das plantas e dos animais, afetando seus processos essenciais. Segundo Joice, os efeitos de diferentes estresses acabam se somando e agravando ainda mais o cenário.
Há anos pesquisando na RAS os efeitos de longo prazo dos impactos da ação externa sobre a floresta, ela dá exemplos do que já está ocorrendo com os besouros “rola-bosta”, que diminuíram em quantidade e diversidade após a seca de 2015, impactando na dispersão de sementes e revolvimento dos solos das florestas.
“O exemplo desse grupo mostra que na floresta tudo está interligado e que a perda de um grupo da flora ou fauna funciona como uma reação em cadeia. Esses pequenos insetos estão ligados a muitos mamíferos da floresta, pois usam os seus excrementos como ninho e alimentos. Assim, a sua redução também se relaciona à própria perda dos mamíferos maiores”, conclui.
Condição ambiental em Manaus
Manaus nunca tinha vivenciado fumaças tão intensas procedentes das queimadas. Foram meses sob o ar tóxico que deixava roupas com o cheiro de queimado e geraram uma forte neblina que durou dias e problemas de saúde. Mas, por sorte geográfica, a capital do Amazonas e uma região maior ao noroeste, no escudo das Guianas, possuem uma condição ambiental que pode aliviar os problemas do aquecimento e secas sobre a floresta de terra-firme, afirma Flávia Costa.
“Nesta região, os solos tendem a ser profundos e argilosos, o que retém bastante água das chuvas, que então lentamente abastecem os igarapés via migração pela água subterrânea”, diz a pesquisadora. Assim, forma-se um grande estoque de água no solo e no lençol freático que pode “salvar” as florestas, desde que os períodos chuvosos continuem sendo capazes de infiltrar até esse reservatório.”Temos observado uma resiliência maior de nossas florestas em relação a outras regiões da Amazônia. Isso não significa dizer que as florestas aqui não sofrem, apenas que sofrem bem menos que regiões como a porção sul-sudeste da Amazônia”, relata.
Essa conta só fecha, de forma cristalina, se as matas da região não forem degradadas.
Segundo a pesquisadora, as florestas permanecerão viáveis onde elas são grandes e não isoladas, pois pequenas áreas podem perder espécies sensíveis. “Temos visto no fragmento de floresta do campus da Ufam uma resposta bem mais negativa da vegetação, e também dos animais, à seca de 2023. Como esta área é relativamente pequena e cercada por cidade, o calor intenso e o déficit de vapor no ar causam bastante estresse na vegetação”, diz Flávia Costa. Um sinal evidente foram as plantas que ficaram bem murchas, conforme a própria pesquisadora testemunhou em umas de suas caminhadas.
Savanização da Amazônia?
Nesse ciclo de secas se repetindo e se intensificando, com incêndios na vegetação aumentando, o que se espera é que a floresta mude de “feição”. Não é difícil compreender o motivo. A ecóloga Joice Ferreira descreve que algumas espécies de árvores mais altas, especialmente as que atingem o topo da floresta, são mais vulneráveis aos estresses da seca e tendem a morrer mais. No médio e longo prazo, a vegetação fechada se torna mais baixa. Já outras são mais adaptadas aos ambientes degradados, como bambus, cipós e determinadas palmeiras como o babaçu. Porém, a proliferação das espécies mais adaptadas tende a reduzir a diversidade de outras espécies que eram adaptadas aos ambientes mais conservados e úmidos.
“Após muitos eventos de secas e incêndios, esperamos uma floresta com aspecto mais seco, mais rala, mais baixa e menos diversa, com espécies mais tolerantes a esses estresses. Em relação aos animais, observamos uma redução de diversidade, que acaba favorecendo aquelas espécies mais generalistas que se adaptam aos ambientes perturbados”, comenta Joice Ferreira. Os pesquisadores já observaram e agora quantificam a dimensão dessa luta adaptativa. Espécies de pássaros mais raras ou maiores, por exemplo, costumam desaparecer e, em seu lugar, as espécies menores e mais comuns que observamos e são relacionadas às plantas com sementes menores ganham mais espaço.
A transição da Amazônia como se conhece pode ser ainda de uma floresta, mas com características diferentes e menos úmida. Conforme a pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental, as áreas afetadas por secas e fogo têm ficado mais simplificadas e empobrecidas. Após o fogo, há uma alteração na qualidade da floresta que inclui uma vegetação mais rala, mais aberta, com redução de espécies, dominância das mais generalistas e plantas com menos carbono.
“Hoje se fala muito em savanização. Mas as savanas têm tipicamente uma camada de gramíneas e outra de árvores, e podem ser muito ricas e muito diversas, como é o caso do cerrado brasileiro. Não temos até o momento para essas áreas úmidas que estudamos evidências de uma mudança em direção às savanas”, ressalta.
Futuro incerto
O que vem por aí? É um questionamento que repercute entre a ciência e a população local a respeito dos fenômenos e respostas que a Amazônia dá para a crise climática. “Eu não tenho boas perspectivas. Mas a gente não sabe o que vai acontecer com essa coisa do aquecimento global. Como a gente teve uma seca muito severa, podemos ter uma cheia pior ainda e a gente nunca sabe quais são as consequências dessas secas e cheias porque é tudo muito novo”, desabafa Mariana Lobato.
No Instituto Mamirauá, a seca histórica de 2023 obrigou os pesquisadores a realinharem seus planos de trabalho daqui por diante. O que fazer para evitar que níveis de mortandades como as dos botos e tucuxis voltem a se repetir? “A gente percebe que reduziu drasticamente o número de animais no lago Tefé, isso é uma chance muito grande de que se todo ano tiver um negócio desse, [a espécie] vai acabar, porque foi muito extremo”, projeta Mariana.
Ao final, os pesquisadores do Instituto Mamirauá contabilizaram a morte de 222 botos e Tucuxis no Lago Tefé. Em Coari, outro município amazonense, houve a mortalidade de 121 animais, mas alguns com indícios de ação humana. Na literatura, havia registro de mortalidade apenas em golfinhos da água salgada por hipertermia e doenças, em uma realidade diferente da encontrada desta vez na Amazônia.
Um dos incômodos de Mariana Lobato foi o de ter que exportar as amostras para outros Estados do sul do País para obter os resultados dos exames. Ela conta que a equipe teve muito apoio de outros institutos e grupos de pesquisa, mas que é complicado não se ter ainda o investimento necessário na Amazônia para responder a situações de crise como a que aconteceu no Lago Tefé. Até o mês de dezembro, as pesquisadoras aguardavam parte dos resultados das amostras e seguem esperando quatro meses após o ocorrido.
“Sabe o que eu senti de verdade, que teve muita parceria, teve muita parceria mesmo. Isso foi ótimo, mas a gente ainda encontra uma grande dificuldade de fazer as análises aqui na Amazônia e a gente tem sempre que exportar tudo, sabe? Então tem que ir para o Sudeste, tem que ir para o Sul. Tem que ir para não sei onde. Por que que a gente não consegue fazer as coisas aqui?”, questiona.
El Niño em 2024?
As análises de Ayan Fleischmann confirmam que a temperatura registrada na seca histórica de 2023 está relacionada com a crise climática potencializada pelo El Niño e o aquecimento do Oceano Atlântico Tropical Norte. Essa combinação de fatores causou a redução de chuva e um período muito grande de estiagem na região Amazônica, gerando incidência da radiação solar e redução do nível da água. Ou seja, o El Niño ainda pode durar mais dois anos.
“Todos esses eventos acendem um grande alerta. No próximo ano, se persistir o El Niño e o Oceano Atlântico Tropical Norte continuar quente como uma possibilidade concreta, podemos ter em setembro e outubro de 2024 novamente uma seca forte e extrema”, afirma Fleischmann.
Segundo o pesquisador, a gestão da crise climática e dos desastres ambientais que acontecem no Brasil decorrem da falta de preparação das autoridades. É vital que as ações para minimizar os impactos socioambientais sejam revistas. Com o período de cheia e seca, que se repetem todos os anos com maior ou menor intensidade, o pesquisador acredita que a Amazônia vive em torno de dois potenciais desastres anuais.
Para resolvê-los, é preciso pensar o que fazer não apenas meses antes do pico de cada fenômeno. “A gente não pode esperar passar a cheia para começar a pensar na seca. A gente tem que trabalhar com a prevenção de todos os desastres, adaptação desses desastres e dessa crise climática de forma permanente e urgente”, ensina.
Veja o vídeo: “O calor que mata”
Fonte: Amazônia Real
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