Em 2018, Jair Bolsonaro foi eleito e arrastou para a Câmara apenas 4 deputados federais pelo seu então partido, o PSL. Mas, naquela eleição, a ascensão da direita já era evidente. Nos 9 Estados da Amazônia Legal, 7 governadores comiam no mesmo prato do presidente. Quatro anos se passaram e o que se viu foi o bolsonarismo tomar conta do Legislativo brasileiro. Pautas antiambientais e projetos de lei de ataque aos povos que vivem e defendem a floresta se tornaram uma ameaça real. Antes mesmo de as urnas selarem o destino do Brasil, em 30 de outubro, a base de parlamentares da Amazônia apoiadores de Bolsonaro, hoje no PL, saltou para 37, enquanto Lula (PT) conseguiu eleger apenas 5. A direita radical está ainda mais fortalecida para “passar a boiada” no novo Congresso que assume em 2023, e essa é uma péssima notícia.
“O Brasil vai escolher se quer ficar com a democracia ou com Bolsonaro; se quer ficar com a Amazônia ou com o bolsonarismo. A Amazônia não aguenta mais quatro anos do que está aí”, resume o secretário-executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini. Em entrevista à Amazônia Real, ele lembra que o atual presidente já manda no Congresso e a aposta é que, na próxima legislatura, será ainda mais fácil aprovar projetos antiambientais e de ataques aos direitos dos povos indígenas e populações ribeirinhas e tradicionais. “Se ele for reeleito, vai ser só uma questão de tempo para aniquilar totalmente a proteção ambiental no Brasil.”
As palavras apocalípticas de Astrini são traduzidas em números. Em setembro, portanto um mês antes do primeiro turno, o Brasil acumulava um desmatamento de 9.069 km² na floresta amazônica, a maior devastação em 15 anos. O Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), por meio de sua plataforma de inteligência artificial PrevisIA, prevê que, se nada for feito, o desmatamento neste ano de eleições pode chegar a 15.391 km². A atual composição do Congresso tem sua parcela de culpa.
Da bancada de 91 deputados da Amazônia Legal, 37 foram reeleitos para um novo mandato em 2 de outubro. São nomes como Silas Câmara (Republicanos-AM), um fiel escudeiro do presidente Bolsonaro e do governador Wilson Lima (União). Sua atuação no Congresso, onde ocupa uma vaga na Câmara dos Deputados desde 1999, é sempre favorável ao projeto de destruição implementado pelo bolsonarismo. Votou “sim” nos projetos antiambientais em tramitação, como os PLs 2633/2020 (grilagem), 3.729/2004 (flexibilização do Licenciamento Ambiental), 191/2020 e 490/2007 (mineração em Terras Indígenas), 2510/2019 (revisão do Código Florestal) e 6.299/2002 (liberação dos agrotóxicos). Ele não esconde sua defesa à “Pátria, Família e Liberdade” (em letras capitulares). “Na Congregação Canaã, tivemos a alegria de celebrar a vitória do povo de Deus que confiou a nós a reeleição ao sétimo mandato de deputado federal”, postou em seu perfil no Instagram. Integrante da Assembleia de Deus, Silas Câmara é um dos parlamentares que pertencem à Frente Parlamentar Evangélica.
Dos 37 reeleitos, apenas 3 votaram sistematicamente contra as legislações antiambientais. Dois deles são do PT, Rubens Pereira Jr (MA) e Airton Faleiro (PA), e uma parlamentar pertence hoje ao mesmo partido de Bolsonaro, Silvia Cristina (PL-RO).
A realidade da política local explica a recondução ao cargo da deputada, que em 2018 foi eleita pelo PDT e apoiava a candidatura de Ciro Gomes. Em Rondônia, todos os municípios deram vitória a Bolsonaro, e dois candidatos bolsonaristas foram para o segundo turno, o atual governador Coronel Marcos Rocha (União) e o senador Marcos Rogerio (PL).
Uma das poucas parlamentares negras do Congresso, Silvia Cristina obteve 17.965 votos no primeiro turno em sua cidade natal, Ji-Paraná. Ela se saiu melhor que Lula (16.470 votos), que teve um terço da votação de Bolsonaro (47.429). Nesta campanha, Silvia Cristina defendeu Bolsonaro e até postou vídeos abraçando efusivamente a primeira-dama.
O cientista político Ivan Henrique de Mattos e Silva, vice-coordenador do Legal (Laboratório de Estudos Geopolíticos da Amazônia Legal) e professor da Universidade Federal do Amapá (Unifap), cita o nome de Silvia Cristina para lembrar a ascensão de lideranças representantes de minorias que antes ficavam circunscritas à esquerda e agora começam a despontar no campo da direita
Outra eleição emblemática é a de Silvia Waiãpi, indígena, militar e bolsonarista de carteirinha. Silvia, eleita deputada federal (PL-AP), sempre foi alinhada à direita, defendendo pautas contrária aos direitos dos indígenas, apesar de pertencer a uma etnia. Ela foi secretária especial de saúde indígena, onde sua gestão recebeu muitas críticas. O Ministério Público Eleitoral moveu uma representação contra Silvia Waiãpi antes mesmo de ela tomar posse em Brasília, denunciada por ter usado 9 mil reais de recursos de campanha para pagar uma harmonização facial.
Estratégias discursivas e ideológicas
“Há um importante enraizamento da direita radical e esse é um dado novo no cenário eleitoral brasileiro. Se antes era a renda que definia o voto das classes D e E, hoje há um vasto campo para as pautas morais e isso está acontecendo no subterrâneo do tecido social da Amazônia”, afirma o cientista político.
Isso significa que o eleitor amazônico está se deixando seduzir por estratégias discursivas e ideológicas, universo no qual o bolsonarismo reina, ao contrário do PT. “O foco da campanha lulista foi muito centrado em superar Bolsonaro e houve um certo desleixo para a eleição do Legislativo. O campo que o presidente lidera vai continuar sendo um componente político nos próximos 15 a 20 anos por ser um sintoma de uma crise estrutural.”
Na visão de Ivan Henrique, o Brasil enfrenta desde 2010, e mais notadamente a partir de 2013, uma crise do pacto social que foi estabelecido pela Constituição de 1988, mas consolidado nos governos de Fernando Henrique Cardoso. Nesse pacto, havia alguns acordos implícitos: a aceitação da democracia como valor universal, a inclusão social como política de Estado, a resolução de problemas históricos e a macroeconomia liberal.
Com as crises políticas de 2016 (que resultou no impeachment de Dilma Rousseff) e 2018, o pacto social ruiu de vez e Bolsonaro soube unir o campo do conservadorismo moral com o do ultraliberalismo econômico. Nas eleições de 2020, o presidente foi além: inundou as prefeituras com recursos, pavimentando o espaço para eleger, agora, a maior bancada no Congresso Nacional.
“A base de Bolsonaro era mais fisiológica. Agora com uma base alinhada discursiva e ideologicamente, ficará mais complicado. Os riscos serão infinitamente maiores para as pautas antiambientais, se Bolsonaro for reeeleito. No caso de vitória de Lula, vai ser difícil governar contra essa base”, acrescenta o cientista político da Unifap. Ivan Henrique lembra que essa ação conservadora já vem ocorrendo nos Estados, onde legislações antiambientais foram aprovadas pelas Assembleias Legislativas, com aval ou mando de governadores bolsonaristas da Amazônia Legal.
O Congresso mais conservador, pondera Marcio Astrini, será fiel a quem estiver no poder, uma vez que o Centrão, bloco de partidos do centro político, costuma se aliar ao Poder Executivo. “Quando Bolsonaro se elegeu, ele foi compondo uma base com o passar do tempo. Na primeira metade, com (Rodrigo) Maia (PSDB-RJ) e (Davi) Alcolumbre (União-AP), ele teve dificuldades e só conseguiu com o cupincha do Arthur Lira e com o orçamento secreto”, diz o secretário-executivo do Observatório do Clima.
No Senado, pode haver um contraponto ao bolsonarismo. O presidente elegeu três senadores; o ex-presidente Lula, dois; e a candidata e senadora Soraya Thronicke (União), três também, sendo um deles Alcolumbre. Na Amazônia Legal, na disputa deste ano, foram eleitos nove senadores. O amazonense Omar Aziz (PSD) foi reconduzido ao cargo e como ex-presidente da CPI da Covid se posicionou contra Bolsonaro, mas ainda é uma incógnita para qual lado ele vai pender a partir de 2023.
Renovação à direita
Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima – Foto: Greenpeace
Os Estados do Pará, com 10 novos deputados, Maranhão (7) e Acre (12) foram os que tiveram as maiores renovações de representantes na próxima legislatura em Brasília. E também essa renovação é favorável a Bolsonaro, já que 48 dos 56 deputados federais que foram eleitos para um primeiro mandato apoiam o presidente ou são de sua base de partidos.
Para Márcio Astrini, 2023 ainda vai demorar a chegar, para temor dos que defendem a Amazônia. Caso Bolsonaro perca as eleições, como indicam a maioria das pesquisas de intenção de voto, é provável que o rolo compressor da bancada ruralista se apresse em aprovar os PLs antiambientais e anti-indígenas. “São cinco PLs, mas tem muito mais e eles já caminham mesmo sem um Congresso novo. Os que não foram reeleitos não têm mais compromisso com as urnas neste pós-eleição.”
A Amazônia, sob Bolsonaro, viu a pauta da destruição avançar, o que, em tese, poderia fazer com que os eleitores da região buscassem frear esse ciclo. Mas não foi o que aconteceu. Ainda que Lula tenha vencido nominalmente na região Norte, com 7.652.346 votos, portanto 1.029.972 votos à frente de Bolsonaro, o novo Parlamento de base amazônica que emergiu das urnas é ainda mais conservador. Segundo o secretário-executivo do Observatório do Clima, a economia predatória exportada do Sul e Sudeste para a Amazônia, sob incentivo do governo federal, demoniza historicamente o ambiente.
“Essa economia é o principal ativo e foi dominando esses Estados e hoje se impõe como força social e econômica. Muitas cidades se tornaram reféns da própria ilegalidade e o trabalhador comum só está querendo comida em casa, e precisa trabalhar nessa indústria ilegal”, explica Astrini.
É por essa razão que as pautas morais acabaram entrando nas campanhas deste ano, como há muito não se via. Para o cientista político Ivan Henrique de Mattos e Silva, as esquerdas sempre enxergavam as crises como oportunidades para apresentar o “novo”.
Desta vez, a campanha lulista defende a democracia e o retorno a um governo exitoso, mas não dá respostas para a crise do pacto social. “Ao passo que a direita fala em superar esse estado de coisas, que é terreno fértil para o campo das pautas morais.”
E é aqui que entram duas componentes que mostram como o eleitor da Amazônia Legal precisa ser olhado a partir de algumas características particulares. Uma é o peso da religião e a outra o das Forças Armadas. As igrejas evangélicas impulsionam muitas candidaturas Brasil afora, e os políticos incorporam esse discurso em busca desse eleitorado conservador. Rondônia é, segundo o Censo de 2010 (o último com dados disponíveis), o Estado brasileiro que mais tem evangélicos (33,8% de sua população). Acre (32,7%), Amazonas (31,2%) e Roraima (30,3%) estão entre as cinco unidades da federação com mais devotos ao pentecostalismo e neopentecostalismo. As da região Nordeste ocupam o lado inverso dessa tabela: são as mais católicas e as que mais votaram em Lula. Piauí tem 85,1% de católicos e apenas 9,7% de evangélicos.
De acordo com o pesquisador Guilherme Galvão Lopes, da Fundação Getúlio Vargas, a bancada evangélica diminuiu nas eleições deste ano. Em 2018, foram eleitos 84 parlamentares evangélicos, enquanto que a estimativa de Galvão para a nova legislatura fique entre 60 e 65. Desses, 19 foram eleitos por algum Estado da Amazônia Legal.
O peso do coturno
Já a influência das Forças Armadas, que vêem a Amazônia como seu posto avançado, tem sido construída desde os tempos do “integrar para não entregar”, lema adotado pela ditadura militar, nos anos 1960 e 1970. Ao rasgar a floresta de norte a sul para a construção de grandes obras, das BRs e dos projetos de mineração até as hidrelétricas, a floresta foi tratada como um empecilho para o “progresso”. E, desde então, elas passaram a ter uma presença mais ostensiva do que em qualquer outra região brasileira.
“Isso deriva do fato que oferecem um emprego relativamente estável para as populações locais como também nas ações subsidiárias que fornecem, como os navios-hospitais, por exemplo, que muitas vezes são as únicas formas de acesso da população mais pobre e marginalizada a serviços públicos”, afirma Ludolf Waldmann Jr, professor de Ciência Política da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
Bolsonaro, ex-capitão do Exército, e o bolsonarismo estabeleceram uma identificação muito forte com os militares, o que favorece a propagação do discurso do conservadorismo na região. E é, desde que o então deputado federal do baixo clero decidiu se lançar como candidato em 2014 numa visita à Academia Militar das Agulhas Negras, uma relação com muitos anos pela frente, independente do resultado de 30 de outubro. “Mesmo que o Bolsonaro perca a eleição, o bolsonarismo vai continuar forte nas Forças Armadas. Bolsonaristas ocupam posições importantes na estrutura militar e há um sentimento de que recebem grande prestígio do presidente”, acrescenta o professor da Ufam. “O problema é que não sabemos os efeitos que isso terá nas próximas décadas, já que são militares que ficarão nas Forças Armadas nos próximos 30, 40 anos. Eu gosto de lembrar que os oficiais que ‘apreenderam’ a se manifestar politicamente no tenentismo (na década de 1920) também estavam, como generais, na preparação do golpe de 1964 e à frente de postos importantes nos anos iniciais do regime militar.”
Caberá às deputadas indígenas Sônia Guajarara, da Apib, e Célia Xabriabá, ambas eleitas pelo Psol, a árdua tarefa de se contrapor à onda conservadora da nova legislatura, que antes de assumir já prometem resistência às pautas bombas no Congresso. Ironicamente, as lideranças não foram eleitas por Estados da Amazônia Legal, mas por São Paulo e Minas Gerais.
Fonte: Amazônia Real
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