A atuação desastrosa do presidente Jair Bolsonaro, afrontando as recomendações das autoridades de saúde e conduzindo o país a sucessivas crises políticas e institucionais, não é a única ameaça que o brasileiro enfrenta em meio à pandemia do coronavírus. O ministro da Economia, Paulo Guedes, é outro foco de contágio maligno que pode conduzir o país a, além da catástrofe sanitária que já se descortina, uma tragédia econômica e financeira com repercussões imprevisíveis no campo social.
Em março, quando a pandemia já era realidade, Guedes ainda apostava em um crescimento de 2,5% da economia esse ano, e garantia que R$ 5 bilhões bastariam para proteger o país da doença. Derrotado pelos fatos, vem agindo com evidente má vontade em relação às ações voltadas para proteger os trabalhadores, ao mesmo tempo que adota celeremente medidas para beneficiar os amigos do sistema financeiro.
Apegado aos princípios agora plenamente obsoletos do neoliberalismo chileno, insiste na tese de que a epidemia não pode desorganizar a economia, e que a dívida pública merece mais proteção que vidas humanas. No Brasil, o pacote de estímulos fiscais do governo para enfrentar a pandemia era inicialmente de 3,1% do PIB, e nas últimas semanas subiu para 4,3%. Na Alemanha, o estímulo fiscal será de 4,9% do PIB, na França, de 5%, na Finlândia, de 8%, no Chile, de 4,7%, e no Peru, de 7%.
“Quando a história desse dramático período for contada, haverá um capítulo tragicômico para as propostas iniciais de Guedes de enfrentamento da pandemia. Estará lá o momento em que ele enviou ao Congresso uma lista de medidas para enfrentar a pandemia, na qual constava uma esdrúxula privatização da Eletrobras. Também constará a preocupação totalmente fora de hora e isolada do resto do mundo, com os riscos de desajustes fiscais”, criticou o jornalista econômico José Paulo Kupfer, um moderado, em sua coluna no portal Poder 360.
O projeto de reformas estruturais e disciplina fiscal de Guedes foi levemente ameaçado pelo plano Pró-Brasil, concebido pelo ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e anunciado em 22 de abril pelo ministro da Casa Civil, general Braga Neto, como o “Plano Marshall” do governo. Guedes não esteve presente ao evento no Palácio do Planalto e ameaçou sair do governo na segunda-feira, 27.
O “norte” de Bolsonaro
Bolsonaro, já às voltas com a crise que culminou com a demissão de Sérgio Moro, precisou recuar. Convenceu Guedes a permanecer e, no dia fatídico, reuniu-se com ele e outros ministros para declarar, na saída do encontro: “O homem que decide na economia é um só, chama-se Paulo Guedes. Ele nos dá o norte, nos dá recomendações e o que nós realmente devemos seguir”.
Guedes não perdeu tempo em espicaçar os dois novos desafetos: “O programa Pró-Brasil, na verdade, são estudos, justamente na área de infraestrutura. São estudos adicionais para ajudar nessa arrancada de crescimento que nós vamos fazer. Agora, isso vai ser feito dentro dos programas de recuperação de estabilidade fiscal nossa. Nós não queremos virar a Argentina, não queremos virar a Venezuela”, declarou, na entrevista ao lado do presidente.
Renovado, o “Posto Ipiranga” voltou a dar entrevista na quarta, 29, pregando que os projetos dos ministérios precisarão “caber no Orçamento”. Ao seu lado, Braga Netto foi obrigado a dizer que houve “equívocos” na interpretação do Pró-Brasil e a ouvir mais um desaforo: “Não pode alguém achar, no momento em que fomos baleados, caímos no chão, tá uma confusão danada e temos que ajudar a saúde, alguém vem correndo, bate a nossa carteira e sai correndo. Isso não vai acontecer”, tripudiou Guedes.
O ministro acrescentou: “Apertar o botão da gastança e sair procurando farra eleitoral é simples. Volta e meia tem um que pensa isso, e o que nós temos que fazer? Bater em quem faz isso. Bater no bom sentido, bater internamente. Brigas internas, nós conosco”. Com Braga Netto e Rogério Marinho nocauteados, Guedes apontou as luvas para a derrubada do teto de gastos: “Se faltasse dinheiro para saúde, para romper o teto, nós até poderíamos romper, mas não é o caso”.
Delírio de crescimento
Na quinta, 30, Guedes participou de audiência pública virtual na Comissão Mista do Congresso de Acompanhamento das Medidas Relacionadas à Covid-19, onde insistiu nas “reformas estruturantes”. “Já temos um programa. Ao acelerar as reformas, a retomada do crescimento vai ser instantânea”, prometeu, com a eloquência de um vendedor de carros usados.
Questionado sobre a capacidade de o Brasil atrair capital estrangeiro para investimentos, disse que a questão não é se a reconstrução se dará por recursos externos ou internos, mas pelo capital privado. “Se eu dobrar os investimentos públicos, não vou conseguir fazer o Brasil crescer. Quando a gente fala que vai ter que se reerguer pelo capital privado, é porque o governo quebrou”, argumentou para os parlamentares.
Sobre as propostas na área tributária que circulam no Congresso, incluindo o imposto sobre grandes fortunas, Guedes alegou que não era hora de mexer em tributos. Os parlamentares então perguntaram sobre a instrução normativa publicada pela Secretaria Especial da Receita Federal na segunda, 27, reduzindo de 20% para 15% a alíquota de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) cobrada dos bancos, referente aos resultados de 2019. “Não sabia de redução da CSLL. Se isso for verdade é um absurdo. Vou sair daqui e perguntar para a Receita Federal”, respondeu.
A CSLL é um dos tributos destinados a financiar a Seguridade Social, o que inclui o Regime Geral de Previdência Social. Sua alíquota foi elevada de 15% para 20% em maio de 2015 pela então presidenta Dilma Rousseff. Se a redução se confirmar, beneficiará o sistema financeiro em detrimento do sistema previdenciário.
Fuga de investimentos
A política de austeridade fiscal de Guedes busca alegadamente assegurar o nível de confiança dos investidores. Com o apoio da imprensa corporativa, que insistiu maciçamente na necessidade de reforma da Previdência e congelamento de gastos públicos como forma de atrair investimentos, a expectativa da retomada do crescimento por meio da iniciativa privada se frustrou em 2019. O que houve foi uma queda dos investimentos em carteira e uma fuga de capitais do país ainda antes da eclosão da pandemia do coronavírus, que agravou o problema.
A corrida dos investidores para garantir liquidez vendendo ativos em países emergentes forçou a desvalorização da moeda dessas nações, mas a desvalorização acumulada pelo real é a maior. Enquanto o real se depreciou em 34,5%, a média dos outros países, como Rússia, África do Sul, Índia, China e Turquia, foi de 13,92%.
Parcela da pressão sobre a moeda decorreu da venda de ações por parte de não-residentes, refletida em saída líquida de US$ 7 bilhões (R$ 38 bilhões) entre 21 de fevereiro e 20 de março deste ano, recorde de saídas financeiras do Brasil para meses de março, em uma série histórica que começa em janeiro de 1982. Isso fez o país o responsável por mais de 10% de toda a fuga de capitais nos emergentes.
Mas em dezembro do ano passado, os R$ 19,9 bilhões líquidos que deixaram o Brasil já eram a maior saída da história para um único mês. Segundo o Banco Central (BC), a retirada de dólares da economia brasileira em 2019 superou o ingresso de divisas em US$ 44,768 bilhões (R$ 242 bilhões), ocasionando a maior fuga de capitais da série histórica. Bolsonaro superou com larga vantagem o recorde anterior, de 1999, quando Fernando Henrique Cardoso instituiu a livre flutuação cambial e gerou fuga de US$ 16,1 bilhões (R$ 87 bilhões).
Queima de reservas
Para dar vazão a esse movimento, o BC tem realizado leilões de venda de dólares, queimando pelo menos outros US$ 50 bilhões (R$ 270 bilhões) em reservas cambiais, acumuladas sobretudo durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva, quando o Brasil chegou a registrar o ingresso de mais de US$ 87 bilhões (R$ 470 bilhões) em 2007.
A gestão Guedes-Bolsonaro na economia já torrou ao menos 15% das reservas internacionais acumuladas nos governos Lula e Dilma. E no início de abril, em reunião com senadores, o ministro defendeu que o governo federal venda até metade desses recursos, alvo dele desde a campanha eleitoral de 2018, quando defendia a operação para ajudar na redução da dívida e nas despesas com juros.
A proposta enfrenta resistência de pesquisadores. Em entrevista à ‘ Folha de S. Paulo’, Nelson Marconi, professor da FGV e pesquisador visitante da Universidade de Harvard, aponta outros destinos para a aplicação desses recursos: “Como a situação internacional vai ser ruim do ponto de vista de atração de capital, não vai ter entrada de capital no país, seria melhor usar as reservas de outra forma. Constituir um fundo para empréstimos para saneamento, um dinheiro que gera retorno, e diminuir a dívida pública de outro jeito”, afirmou.
Outro grande obstáculo aos planos de Guedes é a queda global dos preços das commodities, que já chega a 37% este ano e pode piorar, em meio a uma recessão global que ainda não está suficientemente projetada pelos órgãos econômicos internacionais. O Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que a economia mundial se contrairá 3% em 2020, após encerrar 2019 com crescimento de 2,9%. Impacto “muito maior” do que o da crise financeira de 2008 e 2009.
“Esta crise não se parece com nenhuma outra”, avalia a economista-chefe do Fundo, Gita Gopinath. “A queda da produção associada à emergência de saúde e às medidas de contenção relacionadas fazem parecer pequenas as perdas da crise financeira global. É muito provável que este ano a economia mundial experimente sua pior recessão desde a Grande Depressão”, alertou a economista.
Para o Brasil, o FMI projeta queda de 5,3% do PIB, fazendo o país voltar ao patamar que exibia em 2010. Confirmada a retração, a economia encerraria 2020 com um PIB de R$ 6,87 trilhões, muito semelhante aos R$ 6,83 trilhões exibidos há dez anos e bem distante dos valores próximos de R$ 7,5 trilhões de 2013 e 2014, picos da economia nacional antes do início da recessão de 2015 e 2016 causada pela birra de um candidato derrotado aliado a um deputado ressentido. Éramos felizes, e sabíamos.
Fonte: Agência PT