Presidente Figueiredo (AM) – Muitas das propriedades da “Grilagem Paulista”, concessão de terras públicas pelo estado do Amazonas a empresários de São Paulo durante a ditadura militar (de 1964 a 1985), já foram vendidas e revendidas. Madeireiras, de olho no potencial de insumos “legalizados”, foram algumas das compradoras. Entre elas está a empresa Mil Madeiras Preciosas, do grupo suíço Precious Wood. A empresa, com sede em Itacoatiara (a 165 quilômetros de Manaus), possui certificação do Forest Stewardship Council (FSC, sigla em inglês para Conselho de Manejo Florestal), uma organização não-governamental formada por ambientalistas europeus que estabeleceram princípios do bom manejo e responsável na década de 90. Segundo os moradores da comunidade de Boa Esperança, a Mil atua em frente de pressão contra as comunidades de trabalhadores rurais, o que aumenta o conflito na região.
Um levantamento da Procuradoria Geral do Estado do Amazonas (PGE-AM) aponta que as comunidades sobrepostas aos dos empresários paulistas e da Mil Madeiras possuem mais de 900 famílias. À agência Amazônia Real, o FSC disse que sabe da existência de conflito agrário na região e, por intermédio do Comitê de Mediação, Conciliação e Resolução de Conflitos, busca encaminhar uma solução para o caso.
Na década de 1980, trabalhadores de diferentes regiões começaram a migrar para essas terras dos chamados proprietários da “Grilagem Paulista” e ocuparam os imóveis então sem atividade agroflorestal e abandonados. Os trabalhadores eram, em grande parte, pessoas desempregadas de empresas localizadas em Presidente Figueiredo, como a Mineração Taboca, do grupo Paranapanema, ou a Empresa Jayoro, que produz insumos para a Coca-Cola.
Quase 40 anos depois da ocupação da área, as comunidades contam com escolas, postos de saúde, luz elétrica e pavimentação. Os moradores sobrevivem de agricultura familiar, cuja produção é comercializada na capital do Amazonas – que teria sido o objetivo, aliás, do governador Danilo Aerosa (de 1967 a 1971) ao conceder as terras para a “Grilagem Paulista” constituírem um “cinturão verde” na região.
Foi só a partir dos anos 2000 que a Mil Madeiras Preciosas entra nessa história, conforme relatos dos moradores. “Eu cheguei em 1992. Passaram 10 anos, 20 anos, sem os supostos donos chegarem aqui. Quem veio chegar já foi a Mil Madeiras entre 2013 e 2014. Até então chegávamos tranquilos”, lembra João de Deus, 61 anos, agricultor que cultiva hortaliças para vender em Manaus.
A Mil Madeiras Preciosas afirma que adquiriu os lotes de terra após a confirmação do Instituto de Terras do Amazonas (Iteam, atual Secretaria Estadual de Política Fundiária) de que os imóveis eram originados de títulos regulares.
“A empresa afirmou que se o Incra ou Iteam pagassem nos deixava aqui. Depois, ela já queria nos vender. Apresentou várias propostas, apresentaram documento de cartório.
Nunca concordei com a proposta da Mil Madeiras. Não caí nessa lábia. Os empresários podem ter o título de direito, mas nós temos (o direito) de fato”, disse João de Deus. “A Mil Madeiras diz que comprou essas áreas em 2002, mas sabia que havia gente aqui. Por que comprou?”
A comunidade Boa Esperança possui uma população de 3 mil pessoas, escola de ensino fundamental, posto médico, 14 igrejas e uma extensão de ramal (vicinal) de 22 quilômetros. No lugar destaca-se uma plantação de couve-flor que, segundo João de Deus, abastece 40% das feiras da capital amazonense. As famílias também plantam limão, laranja, feijãozinho e frutos da região. Segundo ele, há 17 comunidades localizadas na BR-174 e as de situação “delicada” são Boa Esperança, Nova Floresta, Terra Santa e outras quatro que estão na área “dos paulistas”.
Também morador de Boa Esperança, Sebastião Belarmino da Silva, 56, natural de Alagoas, diz que tem um cadastro no Incra que, na prática, não tem eficácia e registrou seu imóvel de 100 hectares no Cadastro Ambiental Rural. “Estou aqui há quase 30 anos. Nunca tinha ouvido falar da Mil Madeiras. Depois veio querendo tirar a gente daqui”, diz Sebastião.
Para a reportagem da Amazônia Real, ele relatou que representantes da empresa o visitaram três vezes, questionaram se possuía motosserra ou carro e que o objetivo era “regularizar as terras”. “Falei que quando cheguei aqui, a Mil não era dona de nada. Se compraram depois, problema deles.”
Ele disse que trabalhar com a terra causa benefícios, em especial por causa de um curso d’água que passa próximo de seu imóvel. “Nele, plantamos mamão, pimenta, cheiro verde e tem tanque de peixe.”
O geógrafo Maiká Schwade, estudioso da “Grilagem Paulista” e de suas consequências, indicou que os imóveis das comunidades locais são minifúndios com dimensões aproximadas de 250 metros na extremidade mais próxima ao eixo de ocupação e se estende por 2.000 metros nas laterais. Diferente de outros empreendimentos amazônicos, a produção desses moradores é sustentável e ajuda a proteger a floresta.
“Nossa agricultura é familiar, não é desastrosa. Daquela que vai lá e derruba, que isso não é bom”, afirma o agricultor Raimundo Nonato de Araújo, morador da comunidade Jardim Floresta. Ele chegou ao Amazonas com 18 anos, vindo do Ceará, para trabalhar na empresa Mineração Taboca. “O que a gente quer é ter direito para poder ir até o banco e abrir um crédito. Mesmo com o CNPJ da comunidade, não podemos fazer um empréstimo.”
A comunidade Boa Esperança foi criada na década de 1980 e a associação dos moradores foi fundada em 7 de agosto de 1994. A ideia deles era se organizarem para formar uma vila com direito ou acesso a escola e posto médico. A comunidade cresceu tanto que foi criada uma adjacente, chamada de Nova Floresta, com uma extensão de 28 quilômetros de ramal, abrangendo as duas comunidades. Mas, apesar do desenvolvimento local, a instabilidade permanece. Sem o documento da terra, os agricultores não conseguem crédito dos bancos.
Nos últimos anos, a família de Raimundo Nonato Araújo passou a ser assediada por funcionários da Mil Madeiras para que aceitasse os termos de um acordo proposto pela empresa. “Somente em 2018 vieram três vezes. Queriam fazer medições, topografias. Me disseram que era para levar um demonstrativo que seria levado de volta à União para que pudesse negociar com o Estado. Eu não assinei nada, não autorizei”, diz.
O que diz a madeireira?
Em resposta às perguntas da agência Amazônia Real, a empresa Mil Madeiras admite que algo precisa ser feito. Nos últimos 10 anos, segundo o diretor da empresa João Cruz, foram feitas algumas propostas para regularização de todas as comunidades rurais sobrepostas às terras em nome da madeireira.
A mais recente já foi apresentada à PGE, solicitando que o órgão seja mediador do acordo. A empresa propõe o desmembramento e doação sem ônus dos lotes para os moradores, “condicionada apenas que não haja mais ocupação da área remanescente”. A doação seria o reconhecimento extrajudicial do usucapião.
O diretor afirma que a Mil Madeiras possui 45 mil hectares formados por 15 lotes de aproximadamente 3 mil hectares originalmente titulados pelo Estado do Amazonas (aos empresários paulistas). Segundo Cruz, estima-se que aproximadamente 20 mil hectares de seus imóveis estejam ocupados por comunidades rurais.
Em uma outra manifestação sobre o assunto à Amazônia Real, através de nota, a Mil afirma que adquiriu os lotes após confirmação junto ao Iteam (Instituto de Terras do Amazonas, hoje substituído pela Secretaria Estadual de Política Fundiária) de que as áreas eram originadas de títulos regularmente emitidos pelo Estado do Amazonas.
A Mil Madeiras diz que, anos depois da compra, iniciou contato com as lideranças comunitárias de Presidente Figueiredo para formalizar “a titularidade plena das áreas pelos seus habitantes”, mas a proposta não foi aceita.
“Ressalte-se que em todas as comunicações que a empresa manteve com as comunidades sempre informou que reconhece o caráter público, legítimo e habitual da posse exercida pelas comunidades, e que a adesão à proposta formulada seria totalmente voluntária, não tendo ocorrido qualquer tipo de pressão por parte da Companhia”.
Procurada pela Amazônia Real, a FSC-Brasil disse que a empresa Mil Madeiras foi certificada de acordo com o padrão para Manejo Florestal em Terra Firme na Amazônia Brasileira e que um dos requisitos deste Padrão é o cumprimento do Princípio 2, que são os Direitos e Responsabilidade de Posse e Uso. Segundo a FSC-Brasil, este princípio “determina que as posses de longo prazo e os direitos de uso da terra e dos recursos florestais a longo prazo devem ser claramente definidos, documentados e legalmente estabelecidos”.
A organização disse que a certificação é contínua e que, por meio de certificadoras creditadas, “monitora regularmente as organizações certificadas verificando se os requisitos FSC estão sendo cumpridos, recomendando ações corretivas, emitindo não-conformidades ou até mesmo suspendendo o certificado, quando constatado qualquer descumprimento as suas normas e de acordo com o grau de gravidade do descumprimento da norma”.
Sobre a situação fundiária em Presidente Figueiredo, a organização afirmou que para casos como este existe o Comitê de Mediação, Conciliação e Resolução de Conflitos.
“Seja pela certificadora ou pela mídia, o FSC sabe da existência de conflitos na referida região e, por intermédio do Comitê de Mediação, Conciliação e Resolução de Conflitos busca encaminhar a solução para estes casos. Tais questões são objeto das auditorias periódicas, realizadas pela certificadora acreditada pelo sistema FSC”, disse nota.
Latifúndios surgiram de grilagem
Para o geógrafo Maiká Schwade, algumas características gerais se repetem em toda a ocupação da Amazônia. Primeiro, é preciso abrir espaço, físico, eliminando quem já estava ali.
“Essa área de Presidente Figueiredo nasceu do processo de ocupação genocida, acabou
com os Waimiri-Atroari, destruiu vidas humanas”, destaca. Esse tipo de ocupação está na origem dos latifúndios, diz ele.
“A gente vê casos com imóveis com 60 mil hectares. É uma área absurda. Tem imóveis que superam um milhão de hectares, como no sul do Amazonas.” O outro aspecto é a ilegalidade que permeia o processo de titulação das terras.
“Estou seguro de que a maioria das grandes propriedades no Amazonas é ilegal, fruto de processos corruptos, processos ilegais de titulação, e algumas que sequer foram tituladas.
Foram apenas cadastradas em cartório”, diz Schwade. No ano de 2000, durante correições promovidas pela Corregedoria Geral de Justiça do Amazonas, foram cancelados 48 milhões de hectares de terras do Amazonas, uma medida que nunca mais se repetiu, mas revela a magnitude do problema.
Ex-posseiro expulsa moradores
Fundada há 20 anos, a comunidade Terra Santa está no centro de um grave e iminente conflito. Um pretenso fazendeiro de nome João Gomes Brandão expulsou várias famílias do local, ampliando assim os lotes de sua propriedade, denunciam os moradores.
A equipe da Amazônia Real esteve no local, onde conversou com o agricultor Luiz Barbosa Machado, 80 anos, um dos poucos que resistem na comunidade. O ambiente é bem diferente do que se vê em Boa Esperança e Jardim Floresta, as outras duas localidades visitadas pela reportagem. Há poucos moradores e a atmosfera é de constante tensão. Muitos foram embora e o que se vê com mais frequência são caminhões carregando toras de madeira no ramal principal que liga a comunidade à BR-174.
Os estudos de Maiká Schwade indicam que a disputa de terra começou em 2008, quando os pequenos agricultores já estavam instalados. João Brandão passou a ameaçar os moradores. A disputa foi parar na Justiça, que acatou o pedido de Brandão, desapropriando muitos trabalhadores rurais.
“Ele [Brandão] passou a explorar madeira, inclusive castanheiras e amapazeiros, espécies protegidas e com grande valor para os posseiros, pois permite a exploração extrativista”, diz Schwade.
Segundo o pesquisador, grande parte dos lotes está sobreposta aos títulos em nome dos Vergueiro. Não se sabe como João Brandão conseguiu obter os títulos. A Amazônia Real não conseguiu falar com ele. Mas, no Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) a Fazenda Cristo Rei, registrada em seu nome, consta como regularizada.
Para o agricultor Luiz Barbosa Machado, João Brandão chegou à comunidade Terra Santa como um trabalhador rural e fez amizade com outros moradores. Com o tempo, passou a afirmar que tinha comprado imóveis, pressionando os demais a se retirarem. Nos registros em cartório, João Brandão adquiriu 1.900 hectares do lote 96 e, em seguida, mais 2 mil hectares do lote 73. “Ele comprou quando os camponeses já teriam direito ao usucapião.
Fez uma compra leviana, porque já sabia que as comunidades estavam dentro. Entrou então na Justiça para tirar os demais, em um processo estranho de conflito que envolve bastante violência”, diz o geógrafo.
Luiz Barbosa lembra que quando ocupou uma área da comunidade, tentou regularizá-la, mas soube que havia título registrado em nome do empresário Fernando Vergueiro.
“Isso foi em 2002. Eu já estava aqui há cinco anos. Mas fiquei e foi chegando mais gente. Trabalhamos oito anos na comunidade, quando aconteceu esse problema com o Brandão.
Eram 40 famílias. Agora são 15. Antes tinha escola, posto de saúde, agora só tem algumas pessoas morando. A escola está abandonada, tudo jogado”, diz Machado.
João Brandão chegou na comunidade pedindo um “pedacinho de terra”, e acabou ficando. Em 2008, ele mudou o discurso e mostrou documentos dizendo que tinha comprado as terras e passou a derrubar as casas. Um dos expulsos foi Francisco Ariosvaldo França Andrade, 49, que até hoje luta para retornar ao seu lote de 250 metros quadrados, de onde teve que sair 12 anos atrás.
Ari, como é mais conhecido, continua retornando a Terra Santa, onde tem amigos, mesmo com risco de ameaça de Brandão. “Quem vive aqui sabe que ele está sempre intimidando, ameaçando. Os que ficam, têm que aceitar do jeito dele, tem que aceitar que ele tire madeira. Na minha terra, ele tira madeira ilegalmente”, diz.
O conflito entre os moradores de Terra Santa transcorre até hoje e tem um histórico de violência a descaso da polícia. Moradores que foram ameaçados por João Brandão registraram boletins de ocorrência, mas nenhum deles foi investigado. Pelo menos 10 boletins foram encaminhados por Ariosvaldo à reportagem da Amazônia Real. Ele também já fez denúncia na Defensoria Pública do Estado e chegou a receber apoio do defensor público João Camerini, mas a assistência jurídica não teve continuidade.
Camerini entrou com ações de usucapião e com pedidos de embargos em favor em favor de moradores de Terra Santa. “Também estive na área do conflito e realmente não pude realizar uma conversa com os moradores do local porque fui impedido pelo senhor Brandão e outros comunitários que começaram a fazer tumulto na ocasião”, lembra. O defensor encaminhou procedimentos criminais para a Polícia Civil.
Procurada pela reportagem, a Polícia Civil informou que, em uma das diligências em torno do caso, João Brandão foi preso em flagrante, em maio de 2018, por posse ilegal de arma de fogo. Mas, legalmente, o fazendeiro tem o título das terras, segundo o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas.
PGE e MPF se opõem a indenizar empresários
A alegada ilegalidade dos títulos na área de Presidente Figueiredo levou a PGE e o Ministério Público Federal a recorrer contra ações judiciais que os empresários entraram para receber indenizações milionárias e buscando a anulação dos títulos. Outro objetivo é fazer com que toda área titulada pelo governador Danilo Areosa seja reconhecida como domínio do Estado ou da União.
Esses processos se esgotaram no judiciário, que determinou o pagamento de grandes indenizações, estimada pela PGE em um total de 500 milhões de reais, que devem ser pagos pela Eletronorte. “O Judiciário já determinou o valor dos imóveis e benfeitorias perdidas pela formação do Lago de Balbina. Isso já foi transitado em julgado e não cabe mais recurso. Mas aceitou o recurso especial para que o valor não fosse pago enquanto não estiver definido de quem é a terra e os direitos”, explica o geógrafo Schwade.
“Entramos na corregedoria do Tribunal de Justiça do Amazonas e, posteriormente, com ações reivindicatórias demonstrando que todas essas terras são do Estado. E, portanto, essa indenização, se tiver que ser paga a alguém, deveria ser ao Estado do Amazonas. Bloqueamos as matrículas e suspendemos os pagamentos, em 2014”, diz o procurador Daniel Viegas.
Em 2014, o juiz federal Ricardo A. de Sales extinguiu o processo de indenização pelo alagamento dos imóveis ingressado pelos empresários sem decisão do mérito e expediu um alvará em favor da Eletronorte dos valores depositados em juízo. Os paulistas recorreram ao Superior Tribunal de Justiça. Nesse órgão, o ministro Napoleão Nunes Maia Filho suspendeu o pagamento da indenização e remeteu o caso, em 2017, ao Supremo Tribunal Federal. A dúvida central é de quem pertencem as terras.
Para o MPF-AM, as terras alagadas por Balbina são da União, tendo em vista que pertencem ao território tradicionalmente ocupado pelos Waimiri-Atroari. Schwade lembra que a Terra Indígena Waimiri-Atroari foi homologada no governo do ex-presidente José Sarney, mas o decreto federal deixou de fora a área alagada. “O Sarney, portanto, agiu em benefício dos grileiros. Se você for buscar o decreto de homologação, verá que Sarney, ao mesmo tempo em que reconhece as margens do igarapé do Abonari como território indígena, excluiu essa parte do domínio indígena”, diz.
Em 2012, a juíza federal Jaiza Fraxe acatou ação civil pública do MPF e reconheceu o direito indígena, determinando a reabertura do processo de identificação da terra Waimiri-Atroari, para que fossem incluídas em seus domínios as terras inundadas por Balbina. “Mais recentemente, depois que nós denunciamos os crimes da ditadura contra os Waimiri-Atroari, o MPF entrou com outra ação que também busca a ampliação dos limites da terra indígena Waimiri-Atroari”, diz o pesquisador, informando que essa extensão inclui a área que foi grilada pelos paulistas e depois inundada por Balbina.
Fonte: Amazônia Real - por Por: Elaíze Farias