Um acordo entre os presidentes do Brasil, Jair Bolsonaro, e dos Estados Unidos, Donald Trump, pode promover ações de despejos das populações tradicionais
Alcântara é um lugar com ritmo próprio. Para chegar à península onde o município está localizado, a partir de São Luís, a capital do Maranhão, o acesso mais rápido e simples depende da maré. A viagem é feita em barcos de passageiros duas vezes ao dia e dura aproximadamente uma hora.
Assim é a vida do alcantarense, de acordo com as marés. A maior parte dos cerca de 22 mil habitantes do município – que surgiu a partir de uma pequena vila colonial do século 17 –, mora na zona rural. A população, em sua maioria, é formada por remanescente de quilombolas. Segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), no município existem 210 comunidades. A renda vem da pesca, agricultura, venda do artesanato, programas sociais como Bolsa Família e de aposentadorias rurais.
O sossego dessas comunidades foi quebrado em 1980, quando o governo do Maranhão desapropriou 52 mil dos 62 mil hectares do território para a construção do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) da Força Aérea Brasileira (FAB).
Para implantar o CLA, o governo retirou e deslocou 312 famílias quilombolas de suas terras sem consultá-las, sem pagar indenizações, ou reparar os danos sociais, culturais, políticos e econômicos. A violação de direitos dessas famílias foi denunciada, em 2008, na Organização Internacional do Trabalho (OIT), agência da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, na Suíça.
Desde 2008, as comunidades quilombolas de Alcântara possuem Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) assinado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que iria assegurar uma área 78,1 mil hectares, mas o processo de titulação não foi concluído.
Sinal de alerta
Com a mudança no Governo Federal em 2019, inicia-se mais um capítulo nesta história. Em março passado, representantes dos governos de Jair Bolsonaro e Donald Trump assinaram, em Washington, nos Estados Unidos, um Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) para permitir o uso comercial do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). Esse acordo prevê que os Estados Unidos poderão lançar satélites e foguetes da base maranhense. Mas o território continuaria sob a jurisdição brasileira. Para entrar em vigor, o acordo ainda precisa de aprovação do Congresso Nacional.
Essa movimentação acendeu um sinal de alerta entre as famílias das comunidades quilombolas que vivem na área, pois o acordo entre os presidentes do Brasil e dos EUA pode significar uma expansão da área do CLA, em prejuízo dos grupos tradicionais que ali vivem. Em 2010, o governo federal já abria mão dos 62 mil hectares, mas reivindicava mais 12.645 hectares (no litoral), além dos 8.713 hectares que ocupa, para a consolidação do plano diretor da Base de Alcântara.
Para as famílias quilombolas que vivem no local, essa expansão seria desastrosa, pois significaria o deslocamento continente a dentro e, consequentemente, a perda do acesso ao principal meio de sobrevivência do lugar: a pesca. Segundo o secretário agrícola do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares (STTR) de Alcântara, Aniceto Araújo Pereira, se o plano for mantido, serão mais de 20 comunidades afetadas, sendo dez no litoral.
A agência Amazônia Real, em parceria com o site Eco Nordeste, visitou duas das comunidades envolvidas nesse acordo internacional: Canelatiua, que fica a 34 quilômetros da sede de Alcântara; e Mamuna, a 26 quilômetros. Na primeira, Dorinete Serejo Morais, conhecida como Neta, disse que, atualmente, são 53 famílias vivendo na comunidade.
“Não temos como precisar há quanto tempo a comunidade existe. Mas foi encontrado, no Arquivo Público de São Luís, um documento de doação de 1856; e o nosso documento da terra, retirado em cartório, é de 1915”. Ela é auxiliar de enfermagem do Posto de Saúde da Comunidade Quilombola de Canelatiua e integrante do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe).
Dorinete disse que o processo de titulação foi todo concluído e até publicado no Diário Oficial da União (DOU). Só faltou assinar o Título do Território Étnico de Alcântara. Segundo ela, a luta começou em 1980.
“A primeira notícia de que Alcântara receberia um centro de lançamento chegou em 1979. Logo no início, o povo ficou muito desorientado porque tinha muito menos acesso às informações que hoje se tem, por meio das redes sociais. Mesmo assim, teve resistência, tanto que as comunidades ainda permanecem aqui”, relatou ela.
“A nossa expectativa agora tem um pouco de tudo. O desejo é permanecer aqui na comunidade. Mas sabemos que não é fácil e estamos dispostos a resistir. Até agora, não tivemos nenhum comunicado oficial. Nenhum acordo nunca foi enviado a nenhuma entidade de Alcântara para levar às comunidades”, revela a representante do Mabe.
Ela ainda reforça: “Hoje, eles ocupam 8.700 ha e querem mais 12 mil ha, o que daria pouco mais de 20 mil ha e pegaria toda a faixa de costa. É o que imaginamos. Pelo que sabemos, esse projeto sempre existiu. Ele era dividido em quatro fases e parou na [fase] dois. A fase três seria a saída de Mamuna, Baracatatiua até Brito. Num seminário em 1999, isso foi barrado”.
“Nós resistimos porque vimos o que aconteceu com as comunidades que foram retiradas para as agrovilas. Não foi um bom negócio. Elas tinham livre acesso ao mar e terras produtivas e hoje quase 100% dos peixes que consomem vai dessa região aqui. Se nós formos retirados daqui, será mais um povo que vai passar necessidade”, avalia Dorinete Morais.
A resistência de Canelatiua
Nas comunidades quilombolas de Alcântara, as casas de farinha são comunitárias e usadas por pequenos grupos, unidos por parentesco e afinidade. Na comunidade de Canelatiua, encontramos trabalhando a família de José Inauro Correia Ribeiro, 67, presidente do Conselho Fiscal da Associação do Território Étnico Quilombola de Alcântara (Atequila).
Ele contou que acompanha a luta desde o começo. “Participei de barricada, reunião, audiência pública. Sair daqui seria um prejuízo muito grande para todos em Alcântara, que dependem do nosso peixe, farinha e outros produtos. Além disso, na minha idade, se mudasse, não teria nem como ver novas fruteiras crescerem. Vamos resistir até a hora que Deus permitir”, declarou José Inauro.
Na outra comunidade, a de Mamuna, ouvimos Maria de Fátima Ferreira, sócia da Associação Beneficente dos Moradores de Mamuna e delegada Sindical do STTR de Alcântara; e Maria José Lima Pinheiro, também sócia da Associação e integrante do sindicato.
Fátima contou que sua comunidade é bem antiga. “Minha mãe está com 94 anos. Minha avó, Cândida Rosa Silva, era filha de escrava e tinha o papel da terra. Nós não temos vontade e nem necessidade de sair daqui porque mais tarde as crianças de hoje vão acabar na periferia de São Luís, para se tornarem marginais porque não terão o amparo que nós temos aqui. O mar é perto, tem o peixe, o caranguejo, o siri e outros mariscos que somos acostumados a comer. É a nossa feira livre: de onde tiramos para comer e vender para comprar os outros alimentos, pagar as contas”.
Assim como em Canelatiua, os moradores de Mamuna também trabalham na pesca e na roça. Fazem farinha para o consumo próprio e para vender. “Eu sou aposentada, recebo um salário, mas é para tudo, inclusive remédios. Quando está perto de buscar o próximo [salário], o anterior já acabou. E é bom para quem pode pescar. Meu marido ficou doente e não pode mais. No tempo do meu pai, era muito mais farto. Ninguém comprava quase nada porque nem estrada tinha. A gente não ia para Alcântara para ir para São Luís porque tinha barco a vela. Vendia carvão em São Luís e comprava sabão, querosene porque não tinha energia”, confidenciou Fátima.
Depois, ela finaliza: “Será que a minha mãe, de 94 anos, quer sair daqui? Não. Porque aqui é um paraíso para nós e aqui vivemos a vida toda. Podemos até dormir com a porta aberta. Aqui, se precisar de um coco, tem no quintal; uma fruta para fazer um suco, tem também. Em São Luís, precisa comprar tudo”, argumentou ela.
Maria José reforçou as palavras de Maria de Fátima: “Vivemos em uma comunidade muito pacífica e acolhedora. O dia a dia é cansativo, corrido, no sol quente porque a gente trabalha na roça. Mas não troco nada da cidade pela liberdade que eu tenho aqui. Ontem mesmo, eu peguei um balde cheinho de siri. Nós temos uma área de manguezal preservada e é de lá que sai o nosso peixe: as pessoas que moram na agrovila também viviam perto da praia; tinha acesso a tudo isso. Hoje, muitos passam necessidade porque não têm recurso para vir pescar aqui. E a terra também não é boa como a nossa. Acabou com a vida dessas pessoas. Essa terra para mim é como um filho. É única. Não existe outra em outro lugar”.
“Eles querem tirar todos do litoral. Qual o sustento que vai ter? Se você olhar a comunidade, as casas não são boas porque as pessoas tinham medo de investir e ter que sair a qualquer hora. Mas não conheciam seus direitos; não tinham acesso à informação. Isso foi mudando, fomos tendo consciência dos nossos direitos. O meu pai não ajeitava a casa por medo de ter que se mudar a qualquer momento. Isso é matar a esperança de uma pessoa. Não trabalha, não progride porque vai sair e deixar para trás. Isso é cruel”, afirmou Maria José.
Tanto em Mamuna como em Canelatuia, o litoral não fica muito distante de onde as pessoas vivem. Na praia, conversamos com o pescador e agricultor Emídio Silva Ferreira, 52, que trabalha de maré em maré, “no tempo da natureza”, como ele mesmo disse. Ele passa oito dias seguidos pescando com redes e suspende a pesca por um período para consertá-las. Segundo ele, a pesca alimenta a família e permite sustentá-la, embora também plante mandioca, milho, melancia, feijão e arroz.
De Sarney a Sadam
O professor Alfredo Wagner Berno de Almeida, pesquisador sênior da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e professor em diversos programas de pós-graduação de outras instituições da Amazônia – incluindo o Projeto Nova Cartografia Social e Política da Amazônia, da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) –, detalha que em 1980 foram desapropriados 52 mil hectares para a instalação da Base. E que, em 1991, durante o governo do ex-presidente Fernando Collor, foram acrescidos mais 10 mil hectares, perfazendo 62 mil hectares.
Ele conta, ainda, que, em 1983, militares e as organizações locais de trabalhadores rurais firmaram a acordo, numa extensa pauta de direitos dos trabalhadores. Mas as cláusulas não foram cumpridas e mesmo assim a Base foi implantada.
O pesquisador detalha que, em 1985, Comissão dirigida pelo Estado Maior das Forças Armadas, composta por vários ministérios, como o Mirad (Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário), e coordenada pelo Almirante José Maria do Amaral, visitou a área e os moradores organizaram barricadas para protestar.
Ainda em 1986, foram desalojadas 312 famílias, forçadas a mudar para agrovilas distantes da costa marítima, dispondo de terras insuficientes, cujos lotes equivaliam a 16 hectares. “Uma ilegalidade do governo Sarney que reduziu à fração mínima de parcelamento no município. As agrovilas com terrenos de areia quartzosa abriram uma quadra de fome”, conta o professor Alfredo Wagner.
Segundo ele, na época, o Brasil vendia a equipamentos bélicos para o Iraque e, quando da guerra, em que os EUA, invadiram aquele país, a imprensa noticiou que militares que tinham estado em Alcântara no período da ditadura, quando era chamada de Base para Lançamento de Mísseis, e tinham atuado pouco antes de eclodir a Guerra, como conselheiros militares de Sadam Husseim.
Por fim, destacou que a Base não possui licenciamento e não procedeu a consultas sobre obras realizadas após a Constituição de 1988, citando o exemplo da empresa Alcântara Cyclone Space (ACS). “O Acordo assinado com os EUA pelo atual governo também não foi precedido de qualquer consulta e já tramita no Legislativo”, finalizou.
A ACS foi uma empresa binacional de capital brasileiro e ucraniano, criada em 2006, para comercializar e lançar satélites utilizando o foguete espacial ucraniano Cyclone-4 a partir do Centro de Lançamento de Alcântara. Em, 2015, a cooperação entre os dois países foi cancelada pelo governo brasileiro.
José Sarney foi governador do Maranhão de 1966 a 1970 e presidente do Brasil de 1985 a 1990. Saddam Hussein (1937-2006) foi presidente do Iraque de 1979 a 2003.
No dia 30 de abril deste ano, o Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe) fez um pronunciamento no painel “Alcântara, Quilombos e Base Espacial”, organizado pelo Governo do Estado do Maranhão. Durante esse pronunciamento foi abordada a necessidade de incluir as comunidades quilombolas de Alcântara nas discussões sobre o CLA e foi considerado um equívoco grave dissociar o debate científico da questão quilombola. “Jamais orbitaremos no espaço, sem que questões terrenas sejam resolvidas”.
Quinze dias antes do painel, o governo do Maranhão havia realizado um seminário para tratar do assunto, para o qual nenhum representante das comunidades quilombolas havia recebido convite.
Após o painel foi apresentado um documento, sendo um dos destaques a seguinte frase: “a efetiva titulação do nosso território é a segurança jurídica fundamental para o avanço de qualquer debate necessário. Sem a certeza jurídica do nosso território, não há consenso. Não há acordo. Foguetes não decolarão! A certeza do nosso território é a premissa básica norteadora para o debate proposto”.
O documento prossegue com as palavras dos comunitários: “Não somos contra o CLA, tampouco, avessos ao desenvolvimento. Ao contrário, queremos integrar esse processo de desenvolvimento. Podemos e queremos trabalhar na Base de Alcântara, mas queremos ter a segurança jurídica de ao final do expediente poder voltar para nossas casas e terras secularmente habitadas por nossos ancestrais”, conclui o pronunciamento.
O que dizem as autoridades?
A reportagem procurou a Agência Espacial Brasileira (AEB) para saber se a área ocupado pelo CLA será aumentada e se o governo federal está elaborando uma estratégia em relação às comunidades quilombolas que habitam o território em Alcântara.
Por meio da assessoria de imprensa, a AEB respondeu que, em fevereiro de 2018, foi criado o Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro (CDPEB), com vários grupos de trabalhos, cada um responsável por uma temática e que o Grupo de Trabalho (GT) 13 está sob a responsabilidade do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GCI/PR) e trabalha com a temática Quilombolas.
A Amazônia Real encaminhou perguntas à GSI/PR. Como resposta, foi enviado o link de uma publicação do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) com o título: “Conhecendo o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas Brasil e Estados Unidos”. O documento destaca que “o AST não afeta as questões fundiárias”.
“A proposta é fomentar atividades que beneficiarão todos os cidadãos do local. Essa é a grande oportunidade de desenvolvimento social real que trará melhorias na qualidade de vida para toda a região, população, indústria e comércio”, diz o GSI.
O Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI/PR) respondeu ainda que: “ressaltando a dissociação com o assunto anterior, mas em continuidade ao questionamento apresentado, a edição do Diário Oficial da União, de 18 junho de 2018, publicou a constituição do Grupo Técnico (GT) com atribuição para planejar e orientar a integração de políticas públicas e ações sociais a serem implementadas em áreas do município de Alcântara, no Maranhão, com vistas à potencialização do Programa Espacial Brasileiro. Todavia, ainda não existem conclusões sobre tais questões tratadas no âmbito do CDPEB”, disse o GSI.
Em resposta à reportagem, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) comentou o processo de titulação dos territórios ocupados pelas comunidades quilombolas de Alcântara. A assessoria de imprensa do Incra respondeu que “o processo se encontra em andamento, conforme o previsto e amparado pelas normas e decretos em vigor”.
Veja o vídeo produzido na comunidade Santa Maria de Alcântara
Maristela Crispim é idealizadora da Eco Nordeste – Agência de Conteúdo, sediada em Fortaleza, no Ceará. Jornalista formada pela Universidade Federal do Ceará (UFC), é mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente (UFC) e tem 27 anos de experiência no jornalismo, principalmente na área ambiental.
Fonte: Amazônia Real