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Ensaio sobre a cegueira


Por Andreia Fanzeres, especial para a Amazônia Real

Estamos todos sem chão. De repente nos damos conta daquilo que parecia inimaginável. Lidera as pesquisas eleitorais no Brasil um candidato ultraconservador com parco desempenho legislativo em mais de 27 anos de vida política, que propaga seu apreço à tortura, à misoginia, ao preconceito de gênero e à liberdade sexual, à cassação de ONGs, ativistas, defensores de direitos humanos e do meio ambiente. Ironiza e minimiza os efeitos sociais da ditadura militar, enaltecendo-a e negando a história. Acena pelo armamento da sociedade como uma criança que brinca de bangue-bangue, xinga adversários, numa postura tosca para qualquer pessoa pública, e pratica deslizes crassos quando tenta forjar uma conduta mais polida. Já anunciou que não estupraria uma deputada “porque ela não merecia”, que nascem mulheres de fraquejadas dos homens, que não permitiria ser operado por um médico cotista, entre muitas escorregadas. Elas revelam sua visão curta, despreparada e autoritária, o que explica o redirecionamento de sua estratégia de campanha para a fuga do debate público e o anúncio controlado de seus posicionamentos, em uma assustadora e expressiva estética do fascismo. Essas parecem não ser as credenciais a postulantes à Presidência da República.

Mas nem tudo que parece é. E fica a pergunta: como alguém que pratica discursos tão violentos pôde, em pouquíssimo tempo, ascender desta maneira? Talvez pelas soluções radicais e simplistas sobre uma sociedade há muito ferida pelo caos na segurança pública, a narrativa do “bandido bom é bandido morto” (e seus derivados como “índio bom é índio morto”), acaba encorajando o desejo pela eliminação do problema imediato, em vez de apostar em caminhos de longo prazo baseados na construção de políticas públicas, na educação e no investimento em inteligência. Isso demora. Talvez a superexposição de uma figura excêntrica que prometia consertar o Brasil como num passe de mágica tivesse sido providencial para uma imprensa norteada pela intenção de derrubar o PT, especialmente após as eleições de 2014. Talvez os muitos erros do PT nas decisões que implementou, nas alianças controversas e perversas que teceu, na corrupção que cometeu, nas reformas que não fez, e, sobretudo, na manutenção de um projeto de poder sem autocrítica, só serviram para agravar a situação de polarização e ódio pelo partido que, desgraçadamente, cegou metade do eleitorado que foi às urnas no primeiro turno.

O esgarçamento da credibilidade na política, a aposta no uso tático das redes sociais no processo eleitoral e a estratégia calculista de produção das chamadas “fake news” deram condições para a propagação de mensagens rápidas e rasas a respeito de qualquer assunto. E produziram também outro efeito: o de blindar o contra-argumento, a vontade do debate, a necessidade de buscar informações mais aprofundadas entre os eleitores. Enfim, o de fazer política. Afinal, política é assunto para os outros. O que se quer é que alguém chegue para mudar, de cima para baixo. E que a mudança seja imediata, sem blá-blá-blá, sem burocracia. Não interessa se a mudança será para melhor ou para pior, pois discuti-la não está no script. O povo tem pressa. O problema é que, hoje, isso significa entregar temas muito importantes nas mãos de alguém que não é só despreparado, mas cuja visão retrógrada ameaça derrubar estruturas inteiras, numa jogada de strike em que nossas conquistas sociais e ambientais são os peões.

Vamos falar de meio ambiente e dos povos indígenas. Desde a redemocratização, e, mais precisamente, após o processo da Constituinte de 1988, as políticas ambientais e indigenistas foram erguidas, tijolo a tijolo, com muito suor por parte dos indígenas, dos movimentos sociais e dos intelectuais brasileiros. Nesses mais de 30 anos, em todos os governos pelos quais atravessamos, esse caminhar nunca foi fácil. A velha política e os velhos interesses ruralistas sempre atrapalharam administrativa, legislativa e juridicamente todos os progressos duramente celebrados. Tínhamos uma das legislações ambientais mais vanguardistas do mundo até 2012, quando, atendendo ao agronegócio e ao arrepio da Ciência, o Brasil aprovou o Novo Código Florestal, vitimando a viabilidade ambiental das áreas privadas e anistiando desmatadores. Brigamos pela sustentabilidade ambiental e pela justiça social na redação de resoluções que aprimoraram o licenciamento ambiental no Brasil e o uso responsável dos recursos hídricos no final dos anos 90. Estabelecemos políticas inclusivas e participativas, conferindo aos conselhos nacional, estaduais e municipais do meio ambiente papel fundamental na tomada de decisão sobre o desenvolvimento do país. Apoiamos estratégias bem-sucedidas de conservação da biodiversidade por meio da aprovação da lei que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (depois de uma tramitação que durou 10 anos!). Definimos mais de 330 unidades de conservação federais e mais de 720 terras indígenas que contribuem inequivocamente para a garantia de água para os brasileiros, para o combate às mudanças climáticas, para a conservação da biodiversidade e para a sobrevivência física e cultural de cerca de 305 sociedades indígenas que falam mais de 270 línguas em nosso país, sem falar nos milhares de ribeirinhos e populações tradicionais que também vivem nas áreas protegidas e são responsáveis, entre outros aspectos, pela comida que chega à mesa dos brasileiros.

Lutamos para superar os mais baixos orçamentos públicos e o desmonte dos órgãos ambientais e indigenista oficial para implementar políticas, assistir à população rural e construir com elas alternativas sustentáveis para a geração de renda. Avançamos no desenvolvimento de pesquisas nacionais sobre manejo de recursos naturais e do fogo para a conservação. Tivemos conduta diplomática de excelência até 2010, o que elevou o Brasil ao protagonismo das discussões sobre clima no mundo. Sempre centenas de projetos de lei e de emendas à Constituição vindos da bancada ruralista ameaçaram os direitos dos povos indígenas às suas terras e à sua própria dignidade, contra as quais os movimentos se posicionaram com coragem. Testemunhamos milhares de atentados e mortes de ambientalistas, indígenas e agricultores familiares que se colocaram no caminho desses interesses. Nunca, nunca nada foi fácil.

Só que agora, alguém literalmente municiado pela elevadíssima rejeição ao PT e pela evidente falta de priorização da pauta ambiental e de direitos humanos, destila suas soluções bizarras e suas convicções inconsequentes que, desde já, imprimem uma espécie de aval para a replicação e materialização de seus preconceitos Brasil afora. Isso fez explodir os casos de violência, que grupos de jornalistas e ativistas tentam registrar numa plataforma e sobre os quais o candidato se exime de qualquer responsabilidade.

Para quem sempre suou tanto para dar um passo de cada vez nessa área – e, principalmente, quem, apesar de tudo, sempre pôde contar com a credibilidade e o compromisso do governo federal para honrar missões como a defesa do meio ambiente e os direitos humanos – as propostas (e não-propostas) do candidato aterrissam como uma trapaça, uma traição. De repente, em poucas palavras, ele promete extinguir o Ministério do Meio Ambiente. Não porque ele tem outra estratégia para avançar nessa área (o que seria desejável numa disputa eleitoral), mas porque “atrapalha” o Brasil. O Ibama e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) servem, para ele, como uma “indústria de multas”. As terras e povos indígenas devem ser “combatidos”. Aliás, o “índio deve progredir”, ou seja, voltamos ao início do século XX, quando se implementou no país uma política baseada na “atração” e na “aculturação” dos povos, e não no reconhecimento de sua diversidade e do direito de ser quem são, ou seja, no direito à autodeterminação. “As mudanças climáticas são uma invenção dos ambientalistas, as ONGs devem ser banidas, os ativistas criminalizados”. É tão difícil pensar que, a essa altura dos acontecimentos, temos que voltar tanto no passado para explicar o óbvio.

Estamos perdendo tempo de dar condições para os servidores ambientais e indigenistas do governo realizarem um trabalho digno, não há por que levantar dúvidas sobre a importância de seu ofício. Já devíamos ter conseguido dedicar orçamento decente para a pasta ambiental cumprir com seus objetivos de conservar e promover alternativas econômicas sustentáveis para os brasileiros, e não de acabar com todo o arcabouço do executivo para a área ambiental no país. Faz muita falta não termos tido até hoje compromisso real na implementação de saneamento básico no Brasil, que tem consequências diretas na poluição e a saúde pública, por isso é criminoso ignorar esse item nos planos de governo. Não há mais espaço para a falta de respeito aos indígenas, que são donos de seu destino e suas decisões, devendo representar-se politicamente e discutir em pé de igualdade na sociedade. Ainda temos muito a fazer. Não é possível aceitarmos, passivos, que toda essa trajetória seja abandonada a troco de nada.

Área de floresta protegida no Amazonas (Foto: Alberto César Araújo)

Andreia Fanzeres é jornalista formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e tem 14 anos de experiência na área de comunicação socioambiental. Já trabalhou em veículos como Revista Ciência Hoje, Globonews, ((o)) Eco e foi freelancer do Valor Econômico. É Alumni do Wolfson College, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), onde participou do Press Fellowship Programme (2009) com o artigo “Comunicação ambiental no arco do desmatamento”. Foi vencedora do Earth Journalism Awards (2009) em três categorias internacionais, do Prêmio de Reportagem sobre a Mata Atlântica (2011), do Prêmio Pedro Rocha Jucá (2013) e do Prêmio Embrapa de Reportagem (2014). É membro da organização indigenista Operação Amazônia Nativa (OPAN) e desde 2016 coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade.

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