Do Brasil de Fato - Há dez anos, os países latino-americanos ocupavam papel de destaque na conjuntura internacional, com forças de esquerda e progressistas no comando de diversas nações da região. Hoje, o retrato da América Latina é bem diferente. Golpes, derrotas eleitorais e avanço do projeto neoliberal são algumas das marcas deste novo momento.
“Ainda assim, não devemos ser pessimistas”, acredita Ignacio Ramonet, jornalista e sociólogo espanhol, que, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, analisou o panorama latino-americano e indicou possibilidades de cenários num futuro próximo.
“Há muitas eleições neste ano, são oito grandes eleições de presidentes na América Latina. E há dois países em que, se as atuais pesquisas forem confirmadas, o panorama político da América Latina mudaria”, aponta o diretor de redação do Le Monde Diplomatique na Espanha.
Ramonet põe luz nas eleições presidenciais da Colômbia e do México, onde, apesar de serem exceções da onda mais à esquerda da década passada, têm atualmente pesquisas que indicam que candidatos progressistas podem se tornar os futuros mandatários.
O jornalista espanhol posiciona o Brasil neste cenário, em especial analisando a perseguição que Luiz Inácio Lula da Silva vem sofrendo, o que poderia acarretar no impedimento de sua candidatura à Presidência.
“Eu espero que Lula possa ser candidato e ganhe brilhantemente. Se o Lula ganha no Brasil, [Gustavo] Petro na Colômbia e [Andrés Manuel] López Obrador no México, teremos outra década muito positiva, com uma economia que logo estará começando a funcionar. Eu desejo isso profundamente”, afirmou.
Esta semana, publicaremos, em duas partes, a entrevista com Ignacio Ramonet. Confira aqui o primeiro trecho:
Qual é a situação da América Latina hoje em comparação com a última década?
Há dez anos, tínhamos um panorama latino-americano espetacular, porque era o continente onde o maior grupo de países estava governado pela esquerda. Em nenhum outro continente tinha tantas forças de esquerda governando com programas de transformação social. No Brasil, na Venezuela, no Equador, na Bolívia, no Uruguai, na Argentina e, em parte, no Chile.
Hoje em dia, o panorama é muito diferente por diversas razões. Se pegamos esses mesmos países que acabo de citar, no Brasil, há um golpe institucional e uma direita neoliberal. Na Argentina, o kirchnerismo e o peronismo progressista perderam as eleições; Macri voltou a ganhar recentemente nas eleições legislativas. Na Venezuela, há um ataque brutal, com guerra econômica, midiática, financeira, com contrabando para suprimir os medicamentos, a comida; o país está submetido a um ataque brutal. E, na Bolívia, que está muito bem governada, acontecerá eleição neste ano, mas [o presidente] Evo Morales perdeu o referendo ano passado.
E o Uruguai, sim, é governado pela Frente Ampla, saiu o [Pepe] Mujica, entrou Tabaré [Vázquez], eleito. Então, como podemos explicar isso? Certamente existem várias explicações, eu vou tentar propor a minha.
Na América Latina, todos os países, exceto um, têm a mesma economia que da época colonial. Os países latino-americanos não souberam modificar sua estrutura econômica. Desde a era colonial, são países especializados na exportação de algumas matérias, essencialmente do setor primário, do solo ou do subsolo, produções agrícolas ou minerais. Quando os preços dessas matérias estão altos, a sociedade passa a demandar, consciente ou inconsciente, a divisão na distribuição desses benefícios econômicos. Isso aconteceu depois dos anos 1920, pós-Primeira Guerra Mundial; aconteceu nos anos 1950, depois da Segunda Guerra Mundial; e, desta vez, na década antecedente, os preços das matérias-primas estavam muito altos, subiram ao longo dos anos 2000. E por que subiram? Porque a China tinha uma economia baseada na ideia de que era a fábrica do mundo. E, consequentemente, para fabricar todo e qualquer objeto, necessitava muita matéria-prima. A China estava crescendo a 10%, 11%, importava massivamente os produtos minerais e agrícolas da América Latina. Isso enriqueceu enormemente esses países e chegam os governos progressistas, que ganham as eleições.
Então, temos, por um lado, o crescimento econômico e governos que distribuíram esse crescimento. Os governos de esquerda coincidem na abundância de recursos que podiam distribuir. E todos esses governos fizeram o mesmo: alfabetizaram a sociedade, escolarizaram, multiplicaram as políticas de saúde, de moradia. Cada um tem seu próprio programa: Fome Zero no Brasil, Misiones Milagro e Misiones Barrio Adentro na Venezuela. Criaram uma política muito popular que respondia às necessidades da sociedade. O que chamamos de dívida social, que foi acumulada durante séculos nesses países.
Há outra pergunta que pode ser política ou geopolítica: Por que os Estados Unidos, que nunca permitiram que um governo progressista chegasse ao poder na América Latina, democraticamente ou não democraticamente, permitiram que isso acontecesse aqui? Não há um exemplo na América Latina, no Caribe, na América Central e na América do Sul, de um governo progressista que realmente pretendesse transformar a sociedade que não tivesse que resistir à vontade dos Estados Unidos de derrubá-lo. Vocês conhecem a história da Guatemala, em 1954; de Cuba, em 1961, que resistiu, evidentemente, em circunstâncias muito difíceis; contra Goulart, no Brasil, em 1964; contra Juan Bosch na República Dominicana, em 1965; contra Salvador Allende e a Unidade Popular, [no Chile] em 1973; contra Torrijos e Noriega no Panamá, em 1989; Granada, em 1982, etc.
Provavelmente, porque, quando Lula chega ao poder, os Estados Unidos estão mobilizados no Oriente Médio e na Guerra do Iraque, com 500 mil soldados, e não podem ter três frentes, podem ter duas. Não há dúvida de que não podemos imaginar que a existência de governos progressistas na América Latina tenha sido possível e que os Estados Unidos tenham ficado passivos, isso é impossível. Acontece que não podiam fazer outra coisa, porque estavam mobilizados em outro lugar.
Mas quando os dois fatores, crescimento e distanciamento dos Estados Unidos, se modificam, quando já não há nada a ser distribuído por causa da crise e quando os Estados Unidos concentram o ataque sobre a América Latina, as coisas mudam. Esses governos perdem as eleições, algo que aconteceu em todos os lugares: na Argentina; Correa perdeu as eleições municipais no Equador; Evo Morales perdeu o referendo na Bolívia; perderam as eleição legislativa na Venezuela. Claro que em cada país é diferente, mas globalmente vemos que aconteceu em todos os lados. E esses governos têm menos para distribuir.
Aí também está presente a ideia de que muita gente que se beneficiou durante os governos progressistas não reconheça esses benefícios, pelo contrário, continua cobrando mais políticas sociais que os governos já não podem criar, porque não têm recursos por causa da crise. Hoje temos um panorama muito diferente do que tínhamos dez anos atrás, em que já não é sistemática a vitória das forças progressistas. Ainda assim, não devemos ser pessimistas.
E, tendo em vista que neste ano teremos eleições em diversos países, como Brasil, Venezuela, Colômbia, Paraguai, México, entre outros, qual o cenário que se aponta?
Há muitas eleições neste ano, são oito grandes eleições de presidentes na América Latina. E há dois países em que, se as atuais pesquisas forem confirmadas, o panorama político da América Latina mudaria.
O primeiro é a Colômbia, onde o principal candidato, segundo as pesquisas, é um dirigente progressista, o [Gustavo] Petro, que já foi prefeito de Bogotá. Pela primeira vez, a Colômbia não seria governada pela direita liberal ou pela direita conservadora. Seria um governo muito diferente na perspectiva dos Acordos de Paz, porque a FARC [Força Alternativa Revolucionária do Comum] não vai apresentar um candidato. Isso já altera a relação com a Colômbia, altera a relação no resto da América Latina, porque a Colômbia é hoje o principal aliado militar dos Estados Unidos, então as coisas podem mudar.
O segundo, mais importante ainda, é o México. O principal candidato, com cerca de 17 pontos de diferença, é Andrés López Manuel Obrador, que é candidato pelo partido que se chama Morena, à esquerda do PRI [Partido Revolucionário Institucional]. Bem, não estamos aqui para qualificar se é mais de esquerda que Lula ou menos de esquerda que Chávez, mas são partidos que chegam pela primeira vez ao poder, com programas de transformação social. O México precisa disso, porque tanto o PRI quanto o PAN [Partido de Ação Nacional, ambos partidos revezam na Presidência mexicana] não souberam governar, é quase um Estado falido. E, além disso, o país foi atacado, humilhado, pelo presidente dos Estados Unidos, com a construção do muro. Então, se no México e na Colômbia esses resultados forem confirmados, nós diríamos que hoje, na América Latina, há uma perspectiva de que a esquerda tome a dianteira.
Como o que vem acontecendo no Brasil, em especial, a possível não candidatura do Lula, impactaria internamente o país e, principalmente, os países da região?
Evidentemente o Brasil é central, é o país mais importante da América Latina, não há dúvidas. O Brasil tem uma influência em escala internacional. Além disso, os governos de Lula e Dilma colocaram o Brasil entre a elite internacional. O Brasil faz parte dos BRICS, que foi criado quando Lula era presidente. Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, os grandes países emergentes, onde estão alguns dos líderes mundiais, como a Rússia e a China. O Brasil faz fronteira com quase todos os países da América do Sul, então, o que acontece no Brasil repercute em todas as partes.
É preciso lembrar que o primeiro presidente progressista depois de Chávez, foi o Lula. Lula foi eleito em 2002, assumiu em 2003 e essa articulação Lula-Chávez teve uma grande influência na região. Consequentemente, toda a operação do golpe de Estado contra Dilma, o golpe institucional, a batalha agora jurídica contra Lula, que quer evitar que ele possa ser candidato, enquanto ele aparece como preferido em todas as pesquisas eleitorais, e enquanto Lula é o presidente mais admirado entre todos os outros. Lula fez 40 milhões de brasileiros saírem da pobreza. Ninguém no mundo inteiro, em nenhum momento da história, tirou 40 milhões da pobreza em tão pouco tempo. Além disso, como diz Lula, ele, que nunca foi à universidade, criou não sei quantas universidades, vinte universidades no país.
Então, não é preciso sequer defender Lula, porque ele já está na história, como Mandela está na história, como Gandhi está na história. Lula é um presidente internacional, é um ícone mundial. Então os juízes, os meios de comunicação, as forças políticas que se opõem ao Lula, vão parar na lata do lixo da história, porque o Lula não sairá da história.
Eu espero que Lula possa ser candidato e ganhe brilhantemente. Se o Lula ganha no Brasil, Petro na Colômbia e López Obrador no México, teremos outra década muito positiva, com uma economia que logo estará começando a funcionar. Eu desejo isso profundamente, porque a América Latina precisa que Lula seja o próximo grande presidente do Brasil.
Foto: Marcelo Cruz/Brasil de Fato