Destinar vagas especificamente para estudantes pretos, pardos e indígenas é positivo porque ajuda a aproximar a população da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) à população brasileira. É o que dizem estudantes que se consideram pretos, pardos e indígenas que conseguiram, sem cotas, uma vaga no curso de medicina com maior prestígio do Brasil.
O G1 entrou em contato com seis estudantes pretos ou pardos matriculados atualmente na graduação em medicina da FMUSP, e conseguiu ouvir cinco deles sobre a decisão da Congregação da faculdade que, no último mês, aprovou a instituição de cotas raciais no vestibular pela primeira vez na história. No próximo processo seletivo, 15 vagas serão destinadas a estudantes de escola pública que se autodeclarem pretos, pardos e indígenas ou (PPI). Elas serão reservadas junto com um total de 50 vagas de medicina da FMUSP no Sistema de Seleção Unificada (Sisu). As demais 125 vagas continuam sendo oferecidas pela Fuvest, com o programa Inclusp, que dá bônus a estudantes da rede pública e PPI.
Os estudantes ouvidos pela reportagem são favoráveis à instituição de cotas, consideradas por eles como uma ferramenta de combater o “viés aristocrático” da universidades, e aumentar a representatividade não só do tom de pele, mas de ideias.
“A presença de um negro é rara na faculdade. Eu não sinto preconceito, eu sou invisível, é como se eu não existisse. Na UnB, por exemplo, existe cotas raciais há muitos anos, é um retrato social diferente. Na minha sala somos eu e mais dois ou três, no máximo, de uma turma de 180. Você não se vê representado naquele lugar, não tem modelo, por isso a cota é fundamental para aumentar a representação”, diz Pedro Henrique Rodrigues Santana, de 24 anos, aluno do 4º ano de medicina da USP.
Pedro Henrique Santana, de 24 anos, aluno do 4º ano de medicina da USP (Foto: Arquivo pessoal/Pedro Henrique Santana)
“A presença de um negro é rara na faculdade. Eu não sinto preconceito, eu sou invisível, é como se eu não existisse”
Pedro Henrique se considera de uma família de classe média e estudou a vida toda na rede particular de ensino. Ele estudou engenharia na Unicamp, mas desistiu do curso, começou a estudar sozinho para se preparar para o vestibular, e conseguiu a vaga no curso de medicina da USP.
Discriminação já na matrícula
Uma estudante de 23 anos, que preferiu não se identificar, atualmente cursa o 3º ano da graduação, depois de ter sido aprovada pela Fuvest usando os bônus de escola pública e PPI do Inclusp. Ela ressalta que o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ainda tem muitas falhas e não é uma prova ideal, mas é capaz de selecionar uma diversidade maior de pessoas, e “por também não ser restrito ao público de cursinho ou muitas vezes de escolas particular”.
De acordo com a estudante do terceiro ano, “demorou para a USP perceber que o bônus PPI que ela oferecia não tinha um impacto real e uma inclusão real da população na universidade no geral”, e principalmente nos cursos mais concorridos. “O preço, a fama e o perfil de prova da Fuvest afasta muitos candidatos com muito potencial, mas que acabam não prestando a prova por medo. Muitos amigos da escola pública e até do cursinho, por medo de fracassarem, nem se permitiam fazer tal prova.”
A jovem afirma que sua vida na faculdade “não tem sido fácil”, e que sofreu seu primeiro episódio de preconceito ainda no ato da matrícula, quando diz ter sido intimidada pela funcionária da secretaria, que duvidou da validade de seus documentos. “Ela soltou que ‘não sabia dessas coisas novas, que antigamente não tinha essas coisas de cotas, de ajuda’, dando a entender que eu não tinha passado de verdade. E voltou a repetir isso quando me pediu para assinar minha declaração de PPI. Me fez sentir constrangida por me declarar PPI, identidade que nunca neguei. Foi bem horrível. Não tenho uma lembrança boa da minha matrícula.”
8,6% de cotas para pretos, pardos e indígenas
Com a decisão da Congregação, 50 das 175 vagas de medicina em 2018 serão selecionadas via Sisu, com a nota do Enem. Dessas 50 vagas, 10 serão reservadas para candidatos de ampla concorrência, 25 para candidatos que tenham feito o ensino médio em escola pública, e 15 vagas para candidatos da rede pública que se autodeclarem pretos, pardos e indígenas.
Pablo Rodrigo Andrade, de 22 anos, também se considera favorável à adesão da FMUSP ao Sisu com as cotas raciais. “Eu acho que a decisão pode aproximar o perfil de alunos da FMUSP ao perfil da nossa sociedade. Acho que é um avanço, embora eu questione bastante a ausência do critério renda nas modalidades de cotas aceitas pela USP via Sisu.”
O estudante, que saiu de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e foi aprovado na Fuvest 2014 e em mais sete vestibulares, só conseguiu se manter no cursinho e pagar a taxa do vestibular da Fuvest porque contou com a ajuda de professores do cursinho e de parentes. Ele usou os bônus do Inclusp para alunos da rede pública, mas optou por não usar o bônus adicional para estudantes pretos, pardos e indígenas. “Na minha época, apesar de existir a opção de bônus adicional para PPI na Fuvest, eu não fiz essa autodeclaração. Ainda assim, eu me considero pardo, minha família é um mix entre negros, indígenas e portugueses”, explicou ele.
Atualmente, o estudante cursa um período de intercâmbio na Universidade Harvard. Ele foi selecionado para o programa de pesquisa internacional no ano passado, e juntou mais de R$ 30 mil em um financiamento coletivo para conseguir pagar os custos da viagem.
‘Viés aristocrático e branco’
Augusto Ribeiro Silva, de 26 anos, aluno do 6º ano, também comemorou a implantação das cotas. No entanto, ele teme que as notas de notas de corte exigidas pelo Sisu sejam muito altas e não democratizem o acesso. Augusto também lembra que as ações de permanência estudantis precisam existir e ser eficazes para garantir que o aluno conclua o curso.
“Outros cursos já aderiram ao Sisu, mas cobram nota de corte muito alta. Mas mesmo que seja algo simbólico, já vejo com uma vitória. Acho que o fato de a faculdade de medicina da USP ter sido a última a aderir às cotas é muito grave”, afirma.
O estudante, que se considera pardo, é do litoral de São Paulo e estudou na rede privada como bolsista. Ele lembra que a USP é mantida com dinheiro público e com impostos como ICMS, repassados pelo governo. “Esse é o imposto cobrado sobre o consumo. É o pobre que consome mais, que gasta tudo que ele ganha. A USP é mantida com dinheiro público, não tem sentido manter esse viés aristocrático e branco.”
“Outros cursos já aderiram ao Sisu, mas cobram nota de corte muito alta. Mas mesmo que seja algo simbólico, já vejo com uma vitória. Acho que o fato de a faculdade de medicina da USP ter sido a última a aderir às cotas é muito grave”
Educação pública de qualidade
Para Pablo, as cotas são uma medida paliativa para garantir que estudantes em condições desiguais possam ter acesso ao ensino superior público. Ele diz concordar que é preciso, ao mesmo tempo, melhorar as condições da escola pública, para que ela consiga preparar os estudantes de forma “equiparável aos dos grandes colégios”.
“Eu fico pensando que, se um dia, realmente atingirmos a tão sonhada educação pública de qualidade, cotas serão obsoletas. Mas e até lá? O que a gente faz com as pessoas da minha geração que não tiveram acesso a essa ‘educação de qualidade’? A gente vai ignorá-las o direito de entrar numa instituição pública de ensino pelo simples fato de que eles não sabem resolver uma reação química de cadeia longa, ou descrever a circulação dos peixes ou sobre o passado histórico-econômico de São Paulo. Essas são algumas das questões que caíram na minha Fuvest!”
“Acho que a política de bônus da Fuvest – escola pública, com bônus a mais para PPI – foi uma medida que teve algum impacto, mas não significativo o suficiente. Eu ainda não consigo enxergar a mesma diversidade étnica brasileira nos anfiteatros em que tenho aula. Eu consigo enxergar, sim, nos pacientes que atendemos.”
Aceitação e integração
Calouro na Universidade de São Paulo, Luis Fernando Brito, de Mairiporã, na Grande São Paulo, está terminando o seu primeiro semestre de graduação em medicina na USP. O estudante, que fez um ano preparatório de cursinho, e foi aprovado na Fuvest com bônus do Inclusp em sua segunda tentativa, também se diz favorável à implantação de cotas no curso.
“Sou a favor, porque a desigualdade para com as pessoas PPI ainda prevalece. Com essa desigualdade, há diversas diferenças nas oportunidades, inclusive para entrar na faculdade via vestibular, o que é ajustado com as cotas”, explicou ele ao G1. O estudante diz que consegue pensar em cerca de 12 colegas que também são negros na sua turma de calouros – no total, foram oferecidas 175 vagas. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população preta, parda e indígena no Estado de São Paulo representava, em 2010, 34,7% do total demográfico.
Tanto Luis Fernando quanto Pablo concordam em um ponto: apesar da pouca representatividade de negros na faculdade, os colegas estão cada vez mais interessados em entender as raízes do racismo no Brasil, na universidade pública e na melhor universidade do país.
“Todos os colegas me trataram bem até agora”, afirmou Luis. “Eles prestam bastante atenção nisso na faculdade.” Pablo afirma que a decisão histórica da faculdade vem inserida em um contexto específico. “Acho que essa iniciativa surgiu de um contexto em que a comunidade FMUSP, incluindo seus alunos, realmente pararam para discutir a respeito. Eu não digo que haja unanimidade sobre adesão ao Enem, bem como a instituição de cota PPI. Mas tudo isso pelo menos fez surgir um debate conscientizador entre partes com opiniões diferentes, por vezes tão opostos.”