Brasil de Fato - por Olivia Carolino Pires - O falecimento do cubano Fernando Heredia é uma grande perda para a luta revolucionária
Fernando Martínez Heredia faleceu nessa segunda feira, 12 de junho, em Cuba. São muitos os militantes de diversas gerações que lamentam a partida desse companheiro que uniu teoria e prática num pensamento vivo. Sua produção é um importante legado de um marxismo original e de uma ferramenta para a ação política. Fernando Heredia é um dos mais importantes pensadores marxistas da América Latina e do Mundo.
Se fosse necessário definir Fernando Heredia em uma só oração, diria que é um revolucionário cubano comunista. Revolucionário por haver sido insurrecional e por ser subversivo contra a ordem e as dominações. Cubano na sua plenitude, e por isso irreverente, patriota, ocidental e simpático. Comunista por ser internacionalista, pela austeridade em que viveu, pela entrega e a humildade verdadeira. Todas essas qualidades as foi desenvolvendo numa vida caracterizada por uma dedicação incansável ao trabalho e um amor sem limites às tarefas que realizava.
A combinação de tudo isso foi um ser humano que se forjou a si mesmo através dos papéis que lhe tocou desempenhar. Essas são palavras do próprio Heredia, homenageando a Manuel Piñero, em 2008. Não encontro descrição melhor para homenagear quem as escreveu do que citar a homenagem ao amigo falecido em 1998. A essa dupla, Manuel Piñero e Fernando Heredia, devemos muito do legado latino-americano do Projeto Popular.
Conheci Fernando Heredia em 2001 no intercâmbio Político e Cultural do Projeto BrasCuba. Eu era apenas uma menina-militante que se depara com o povo e com a revolução cubana e tive o privilégio de olhar para Cuba pelos olhos de um revolucionário. Fernando foi um revolucionário cubano que expressou na ação e no pensamento a essência da Revolução: rebeldia, ousadia, solidariedade e humildade.
Sua coerência ideológica, política e na vida cotidiana nos ensinava uma cultura política diante de uma realidade que precisa ser transformada.
Lembro que para aquele grupo de jovens do BrasCuba a tarefa dada foi a de não perdemos a capacidade de se indignar, utilizar todos os instrumentos intelectuais que estejam ao nosso alcance, colocar a serviço da luta o trabalho intelectual, não temer romper a ordem do sistema, ser subversivo, atacar a ordem vigente e não parte dela e abandonar as distintas ideologias favoráveis à dominação.
Daí em diante ele esteve presente na minha vida e nas pesquisas que desenvolvi na universidade, na graduação, sobre a dupla moeda na Economia Cubana, até a pós-graduação, o doutorado sobre “Questão Nacional na América Latina” que foi inspirado em uma parte de seu pensamento, que é o tema da Libertação Nacional, fundamental para maior parte dos povos e que não era uma proposição original de Marx.
Grande parte das entrevistas da tese com Fernando Heredia foram realizadas em contextos de formação de militantes (2007, 2011, 2013 e 2014); Em 2007, Fernando e Ester Peres, sua companheira e grande referência na educação popular, estiveram assessorando o curso de Teoria Política Latino-americana da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF). Diante da riqueza e diversidades de processos políticos e organizativos da América Latina e África reunidos nesse curso, acredito que a contribuição deles fez com que todos os militantes saíram dessa experiência formativa compreendendo que na América Latina não se separa luta de libertação nacional, anti-imperialismo e transição socialista, além da convicção da necessidade de construir uma organização revolucionária forte. Bom, quem conviveu com Fernando e Ester, com certeza, carrega pela vida a fora um grande sentimento de amor.
Trajetória
Fernando nasceu em Cuba, em 1939, e com menos de 20 anos estava nas trincheiras da revolução de seu país, revolução essa que, durante sua vida, ajudou a realizá-la e concebê-la como uma Revolução Socialista de Libertação Nacional. Estudou na Universidade de La Habana de 1959 a 1963, graduando-se em Direito. Em 1966 foi um dos fundadores de “El Caimán Barbudo”, e no final desse ano fez parte do grupo que criou a revista mensal “Pensamiento Crítico”, tendo sido seu diretor durante todo o tempo em que foi publicada, de 1967 a 1971.
A revista “Pensamiento Crítico” deu voz ao pensamento dos revolucionários em tempos de revoluções na América Latina. É uma das publicações mais originais, que combina o marxismo europeu com o pensamento latino, sem deixar de buscar o marxismo dos outros polos irradiadores. Com o fechamento da revista passou a se dedicar a tarefas de pesquisa na Universidade de La Habana. Em 1976 passou a ser pesquisador no Centro de Estudos sobre Europa Ocidental, ligado ao Comitê Central do Partido Comunista Cubano. Trabalhou no Departamento América junto a Manuel Piñero. Heredia foi indicado ao Centro de Estudos sobre América, em 1984, onde foi Investigador titular, chefe de Departamento e membro do Conselho Científico de Cuba, até que se transferiu ao Centro de Investigações Culturais Juan Marinello, em 1994, do Ministério de Cultura. Neste centro, ao trabalhar como investigador, foi o presidente da Cátedra de Estudos Antonio Gramsci desde sua criação em 1997. Fernando Heredia foi o elo da minha geração com a geração setentista, e nos fez chegar com muito rigor e empenho a crítica em tempos de revolução na América Latina.
Nos últimos vinte anos, continuou suas pesquisas e reflexões sobre a realidade cubana, expandiu e sistematizou sua dedicação à história de Cuba, e também a questões sociais e políticas na América Latina publicando importantes livros, como “La revolución Cubana del 30” (2007); “Las ideas y la baballa del Che” (2010), entre outras publicações e entrevistas de extrema importância para criar um legado de uma nova universalização do pensamento marxista a partir dos processos latino-americanos e a serviço de quem se entrega à revolução. Foi um dos principais conhecedores do pensamento de Che Guevara, sendo reconhecido pela Casa das Américas em Cuba em 1989.
Ensinamentos
Um homem sumamente culto e incansável nas conversas com os mais jovens. Dedicou-se a crítica da cultura da dominação, mostrando como em época de Guerra Fria, a ideologia capitalista foi capaz de universalizar a cultura da dominação a partir dos EUA e suas áreas de influência, por meio da democratização das formas culturais, da produção e distribuição da cultura e da homogeneização dos padrões de consumo.
É presente nas reflexões de Heredia que a transformação de povo em público aponta para imobilidade das massas populares, devido a esse processo hegemônico que retira a capacidade crítica de reflexão. Por outro lado, nesse período, o marxismo se universaliza, a partir da URSS, como a orientação à sua área de influência é o da “coexistência pacífica entre socialismo e capitalismo” e da “classe contra classe”. Essa universalização do marxismo tinha como consequência política uma paralisia do movimento dos povos. Diante desse diagnóstico, a contribuição de Heredia fundamenta que a reinvenção da luta contra o capitalismo se dá nos marcos do sentimento de autodeterminação dos povos, do nacionalismo e da soberania. Esse conteúdo não vem de um sentimento, mas, de experiências concretas de Revoluções radicais que se dão a partir dessa premissa, como a chinesa, cubana, vietnamita e argelina, colocam a perspectiva de universalização do marxismo a partir das formações sociais de países vítimas da colonização e neocolonização capitalista.
A medida que a cultura do capitalismo abandona ideias de progresso e civilização do capitalismo originário, sucumbida na individualização, competitividade e meritocracia que divide a sociedade em indivíduos de sucesso ou de fracasso, em alguma medida, o progresso civilizatório é “deixado” para os socialistas. O progresso civilizatório socialista seria uma saída necessariamente coletiva, com vistas a criar uma cultura diferente e oposta à cultura capitalista. Nesse cenário, a diversidade de pensamento é um campo de luta marxista. As chamadas “Revoluções do 3º Mundo”, a partir de suas particularidades, impõe a necessidade do pensamento crítico, ou seja, um marxismo que seja útil para fazer a
Revolução e que sirva para transformar as relações sociais e as pessoas. Além disso, esses processos rompem com as perspectivas que paralisam o movimento das “massas populares” e colocam, a partir da experiência prática da Revolução Cubana, a perspectiva dos povos se colocarem em movimento no sentido de protagonistas de sua libertação. E são desses processos concretos que se desdobra nova forma de organização e concepção de socialismo, a partir da libertação nacional.
O pensamento de Fernando Heredia fundamenta a abordagem da história da perspectiva popular, da perspectiva que trabalhadores, camponeses e miseráveis deixam de ser pano de fundo. Junto a eles, aparecem os que abandonaram a opção de fazer parte ou ser ajudantes da dominação para servir ao povo e tornarem-se povo. Foi essa inspiração que me moveu nas reflexões acadêmicas, nas tarefas militantes e na dedicação à educação popular.
Fernando Heredia fez escola, semeou pelo mundo o método de que devemos nos apropriar dos conceitos e pensamentos marxistas com rigor e aplicá-los com criatividade, concepção essa que dava a tônica no método de construção de seu pensamento, e que desse modo contribuiu para construção de um pensamento marxista vivo. Soube combinar a produção dos clássicos com os problemas específicos de Cuba, da América Latina e do nosso tempo.
Em tempos de golpes no Brasil e de ofensiva do Império em toda América Latina e Caribe, homenagear Fernando Heredia é um dever e uma inspiração para resistência. Seu legado inspira a nossa militância a combinar a produção dos clássicos com os problemas específicos do nosso povo, aliando a história dos povos latinos à suas lutas atuais.
É uma grande perda para a luta revolucionária. Um companheiro extremamente culto, humilde, de enorme sensibilidade. Eu queria deixar registrado um agradecimento profundo ao meu amigo, companheiro e inspiração de vida e luta. Nossa maneira de homenageá-lo é em alto e bom som: “pátria livre, venceremos!”.
Fernando Martinez Heredia (1939 – 2017)
Presente, hoje e sempre.
*Olivia Carolino Pires é militante da Consulta Popular e educadora popular do CEPIS
Edição: Luiz Felipe Albuquerque